Do trauma à trama
O livro de estreia de Taiye Selasi se insere, sem dúvida alguma, no hall do Estudos Culturais e dos romances multiculturalistas, que têm como alguns de seus principais expoentes, pensadores como o britânico Stuat Hall e o Indo-britânico Homi K Bhabha, e ficcionistas do porte de Salman Rushdie e do brasileiro Milton Hatoum. A migração diaspórica de intelectuais cujas famílias deixaram seus países, ex-colônias e neo-colônias africanas, americanas e asiáticas em direção a uma Europa enraizada em sua tradição multicultural, e para os EUA e suas faculdades de excelência, está na base da formação identitária da autora, que foi instada durante anos a dar vazão ao seu talento de escritora, na criação de um romance, pela laureada escritora americana Toni Morrison. Taiye Selasi, nascida em Londres, criada em Boston nos EUA, filha de pai ganês e mãe nigeriana, residente atual de Berlim e com vivência em diversos outros países, inclusive na Índia, é a quintessência do termo que se torna cada vez mais popular no mundo para tratar da condição do africano imerso em outro meio cultural: o afropolitanismo. Segundo as premissas deste novo conceito, o afropolitano deve buscar romper com um padrão de vitimização da condição de africano e negro, ao mesmo tempo que busca manter suas tradições e identidade quando inserido como imigrante em uma outra cultura que se julga dominante, como a europeia, a norte americana, a árabe e a oriental. O resultado disso é um plasmar cultural entre o pais natal do migrante (mesmo que essa natalidade seja de sua origem, pais avós, etc, pois o fato de nascer em um país estrangeiro não o torna naturalmente nativo, a partir do momento que está no seio de uma família repleta de tradições ligadas ao seu país de origem, e questões como língua, religião, alimentação, etc, geram um conflito identitário inerente na formação do indvíduo) e o país que habita. Salesi, que também é autora de “O que é um afropolitano”, ensaio que já é referência sobre o assunto, disse certa vez em uma palestra: “Não me pergunte de onde venho, me pergunte onde eu sou local.” Salesi tem todas as suas culturas de referência, a ganense, a nigeriana, a inglesa, a americana e outras, como por exemplo a indiana, imbricadas e misturadas na formação de sua identidade.
Adeus, Gana é um livro fragmentado no tempo e no espaço, característica marcante da literatura pós-moderna, assim como o indeterminismo, o inacabado e autor
referencialidade (o romance tem um fortíssimo apelo autobiográfico). As relações e os sentimentos familiares vão sendo remontados como um quebra-cabeça. Segundo Daniel Silveira, em seu texto “Entre o presente e o passado”, Onde faz uma rápida mas elucidativa análise do romance de Salesi:
“A análise psicológica dos personagens, a partir de seus danos emocionais, é sustentada unicamente pelo vigor sugestivo da linguagem empregada na obra. Se há expectativa de conhecer as causas dessas desordens internas é porque a linguagem não entrega nada de forma gratuita. Ou seja, é preciso que o leitor retribua algo para o entendimento da obra, que participe da composição dos sentidos da narrativa. No entanto, a contrapartida é gratificante: enquanto o leitor desenvolve sentido, recebe em troca valorosas imagens metafóricas de uma linguagem que anda lado a lado com a poesia. Em Adeus, Gana, um cabelo não é o conjunto de fios que povoa a superfície de um crânio, mas sim ‘um derramamento de petróleo. Preto e lustroso.'”
A base narrativa do romance é a morte de Kweku, médico de certo renome e carreira promissora nos EUA, que após um revés profissional e uma crise existencial, abandona a família e anos depois resolve voltar para Acra, sua cidade natal em Gana, construir uma casa estranha para os padrões arquitetônicos da cidade e se casar novamente com uma simplória nativa. Essa separação, ou abandono, é o mote para que Salesi possa colocar em movimento uma pesada máquina literária de análise psicológica e emocional de Kweku, Folasadé (sua ex-esposa) e de seus quatro filhos. Para atingir este objetivo, a autora faz largo uso da técnica de fluxo de consciência, visando nos mostrar as nuances psicológicas dos personagens, mas ao mesmo tempo deixando-as subentendidas, gerando assim um efeito de significado suspenso ou incompleto,
Nos vários capítulos intercalados à narrativa cronológica, o narrador nos mostra os momentos que antecedem a morte de Kweku (os poucos minutos que leva do seu quarto ao jardim, onde cai morto). Aqui Selasi nos mostra de forma literária a expressão: “momentos antes de sua morte viu a vida passar na frente de seus olhos como um filme.” Inclusive a questão cinematográfica é presença subjacente na narrativa, pois Kweku imagina sua vida sendo filmada por um cameraman virtual que o acompanha sempre.
O texto de Taiye Selasi é “incompleto” mas não inconcluso. Cabe ao leitor preencher os espaços vazios. O leitor é parte ativa na construção do texto, imiscuindo-se neste emaranhado narrativo, composto por uma polifonia engenhosamente utilizada na estruturação do romance com o objetivo de atingir uma interação entre personagens, narrador e leitor. Essa polifonia narrativa é latente na composição do texto, apesar de haver um único narrador, que se utiliza do fluxo de consciência, oscilando entre Kweku, seus quatro filhos, e Fola, permitindo ao leitor adentrar no íntimo dos sentimentos e pensamentos desses personagens.
“Ao ver Sadié agora em seu momento de triunfo, envolvida por Fola como no aeroporto – “sorrindo através das lágrimas”, rosto contra o peito e tudo o mais -, Taiwo sente algo desconcertantemente parecido com raiva. A manhã inteira ela tentou se ater ao roteiro, parecer grave, soar interessada, enxugar o suor sem reclamar, uma tentativa de ser educada que os outros consideram amuação, acostumados ao seu silêncio taciturno. Este é o papel designado dela na peça, assim como o de Olu é de administrar, o de Kehinde é manter a paz, o de Sadié é chorar e piscar os olhos e o da mãe deles é fingir que não vê. Taiwo fica amuada. Eles esperam, aguardam, sentiriam falta disso se ela parasse. Ninguém se preocupa ou pergunta a ela o que está errado, se algo aconteceu. É só, eles dirão com os olhos uns para os outros quando pensarem que ela não pode ver, com as sobrancelhas, dando de ombros.”
As figuras do pai, da morte e do abandono, perpassam toda a obra. A atmosfera é angustiante. O narrador tenta nos mostrar como um ato: o abandono do pai, influencia a vida de toda a família por anos e anos. O quebrar de algo que estava sendo construído. E esse pai era o "engenheiro" responsável por essa construção. Ao abandonar sua família no inicio deste processo, a base continua firme, mas os pavimentos (o desenvolvimento das vidas privadas de seus filhos e esposa) crescem enviesados.
Ganeses em Acra, capital de Gana
É praticamente impossível para uma mulher, negra, e de origem africana, escrever um romance sem expor estas condições que a definem como indivíduo, sem tratar das questões raciais: "Apesar de todo o rebuliço sobre raça, a negritude autêntica - que, para ela, confunde identidade e preferência musical -, é obvio para Sadie que todos eles portam uma pátina de branquitude, ou mais especificamente de WASPiridade¹; sejam negros, latinos, asiáticos, todos eles almejam a Ivy League (grupo das faculdades mais prestigiadas dos EUA)..."
Para nós, brasileiros, a literatura africana ainda causa um certo estranhamento em vários aspectos - devido a forte influência europeia e americana que sempre sofremos -; desde as questões culturais e religiosas, passando pela própria nomeação dos personagens, com nomes próprios muito distantes do nosso dia a dia, até a descrição de casos de miséria absoluta, infelizmente bastante comum na maioria dos países africanos (que fique claro que este "nosso estranhamento" em relação à miséria absoluta, não leva em consideração aqueles dentre nós brasileiros que conhecem a triste realidade econômica de várias regiões de nosso país, seja por estudo, seja por experiência própria). Há um trecho do livro que descreve a morte de uma criança, irmã de Kweku, em uma África onde a morte de crianças não é "só concebível, mas algo comum", ao contrário dos EUA, país em que o personagem estudou medicina, no qual a mortalidade infantil era inconcebível, ou melhor, concebível no coletivo, como um número, uma estatística, isto é, por exemplo: X % dos bebês com menos de duas semanas morrem. "Concebível no plural, mas inaceitável no singular". Por isso, segundo o narrador, nos EUA eles desencorajam os pais a darem nomes aos recém nascidos que são internados na UTI. Selasi se aproveita do choque cultural de Kweku com o procedimento adotado nos hospitais americanos para argumentar que na África, na Índia, nas Antilhas, ou seja, nos países do terceiro mundo, natimortos eram não só concebíveis mas comuns. Que nestas regiões não havia como manter distância da morte apenas não nomeando um recém nascido "defeituoso", pois a miséria se encontra por toda a parte, e a morte é sua consequência mais "concebível". O trecho citado é aquele em que Kweku descreve os últimos momentos de sua irmã mais nova,
de onze anos:
"E tinha mesmo, com um sorriso exaurido no rosto, com a mão na dele, a mão dele no pescoço dela, os sorridentes olhos arregalados ficando mais arregalados e frios conforme os encarava, vendo que ela tinha visto através deles. Rindo da morte (...) Os olhos dela ainda estavam rindo. Desprezando tudo: tuberculose, miséria, médicos charlatões, uma morte precoce. O modo como olhava para um mundo que a considerou irrelevante dizia que ela considerava o mundo irrelevante também. Ela vira tudo o que ele tinha visto - todas as indignidades da pobreza; a aparente falta de importância do seu ser para e no mundo lá fora; a pequenez enlouquecedora de uma existência que não se estendia além de uma praia que eles podiam percorrer inteira em meio dia - sem ver a si mesma em nenhum momento como indigna, desimportante ou pequena."
Assim como trata de questões como desterritorialização, multiculturalismo, migrações e pertencimento, Adeus Gana também discute a questão das novas configurações de família. Em um texto autobiográfico que a autora escreveu para um jornal britânico, "O amor que achamos pelo caminho", ela tenta explicar sua relação com os filhos e a atual esposa de seu ex-padrasto, que foi o homem que a criou. Somente lendo o texto para entender essa intricada relação familiar, mas o pequeno trecho que reproduziremos em seguida nos dá uma boa ideia sobre essas novas configurações familiares do mundo moderno, e também nos fornece pistas para um melhor entendimento do romance
"Está é minha família: minha mãe, minha irmã gêmea, um pai que não é meu pai biológico, um pai de criação que não é meu pai e muito amor entre nós. Depois de anos de profundo embaraço, fui para Nova Delhi em 2009 e aprendi a amar essa família estendida, misturada, quebrada, emendada. Foi na Índia - com cinco crianças me dizendo todos os dias "você consegue!" - que eu finalizei as primeiras páginas do meu primeiro romance, Adeus Gana. É a história de uma família, não da minha família, mas inspirada pela minha: uma família que deve se aceitar como tal em face de todos os defeitos (...) Sim, essa família é forjada por casamentos desfeitos, pais ausentes, mães solteiras - mas somos felizes. Enquanto nos alastrarmos e cicatrizarmos por aí, somos felizes à nossa própria maneira.
Taiye Selasi
O livro de Selasi termina com a expressão máxima do desterro, em um diálogo idílico entre Fola e seu marido morto, Kweku. Ela diz: "Éramos imigrantes, os imigrantes partem." Essa fala é o diapasão que afina e dá o tom principal do livro, ou seja, a questão multiidentitária, assunto recorrente na moderna literatura africana, desde a publicação de O mundo se despedaça, do nigeriano ChInua Achebe, em 1958. Este livro, inclusive, é citado em Adeus Gana, quando um garoto de 14 anos é descrito lendo o romance de Achebe,
Taiye Selasi, assim como sua obra, são como as mulheres para seu personagem, Kweku Sai. Para ele, as mulheres são perigosas, em sua maioria, por que são sonhadoras, não veem o mundo como ele é, mas como deveria ser, por isso são insaciáveis. Essas mulheres não querem aquilo que não podem ter, mas aquilo que não existe para ter, tornando-as assim, eternamente insatisfeitas.
1 - WASP: White anglo-saxon protestant. Sigla que indica um grupo de norte americanos brancos, descendente de europeus e pertencentes à elite econômica.
(A edição usada para esse ensaio é da editora Planeta, lançada pela TAG em 2019. O livro também foi editado pela editora tusquets, vinculada à editora Planeta, em 2021 e encontra-se em catálogo).
Parabens, Nelson! Que capricho, adoro ler suas críticas literárias! Sempre surpreendente! Sempre intrigante, sempre fora do comum! Que tema atual , fiquei curiosa! Um abraço!