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ARSÈNE LUPIN, LADRÃO DE CASACA



ARSÈNE LUPIN, LADRÃO DE CASACA


Maurice Leblanc



Arsène Lupin, ladrão de casaca (em francês, no original, Arsène Lupin, Gentleman cambrioleur), é o primeiro livro da longa série de contos e romances que Maurice Leblanc publicou até sua morte em 1941, tendo o gentil ladrão como personagem. Suas primeiras histórias saíram publicadas na revista “Je sais tout”, em 1905, para dois anos depois serem reunidas no livro que abre a série de aventuras do charmoso, irônico e encantador ladrão francês. As nove histórias que compõem esta obra são emblemáticas, não só para a história do gênero policial, mas também para a história da literatura. A maneira como Leblanc nos apresenta seu personagem nesses nove contos foi pensada e meticulosamente estruturada para dar ao leitor um panorama abrangente de sua personalidade, infância, amores, características físicas, traços de humor e caráter. A impressão que esta primeira obra com as aventuras de Lupin nos deixa - mesmo depois de termos lido todas as suas aventuras, narradas por décadas pelo escritor francês -, é que o personagem nasceu pronto e acabado, com sua personalidade já formada. Desde o primeiro conto do livro Lupin nos é apresentado com as características que mesmo amadurecidas com o passar dos anos e das histórias escritas, já se encontravam presentes em seu perfil.


Como já dissemos, o volume possui nove contos, que estão, a maioria deles, de uma certa maneira, entrelaçados, dialogando entre si, e cumprem uma função específica e mais abrangente (como se Leblanc pudesse prever o grande sucesso de seu personagem nos anos vindouros), qual seja: de apresentar ao público, Arsène Lupin, o ladrão de casaca, ou o ladrão gentil, ou o gentleman ladrão, como preferirem. E de uma maneira muito pouco ortodoxa, o conto que abre o livro, “A prisão de Arsène Lupin”, nos narra a prisão daquele que nos é apresentado como uma espécie de mito da sociedade francesa, uma figura que já assumia ares de herói/anti-herói para os franceses. A bordo de um navio, os passageiros ficam sabendo, através de um telegrama cujo conteúdo vazou e propagou de boca em boca, que Arsene Lupin estava no navio:


“Arsène Lupin entre nós! O ladrão que ninguém conseguia prender, de quem, havia meses, os jornais contavam as aventuras; o personagem enigmático com quem o velho Ganimard, nosso melhor policial, travava um duelo mortal, cujos episódios aconteciam de forma tão pitoresca! Arsène Lupin, o cavalheiro cheio de imaginação que só age nos castelos e nos salões, e que, uma noite, quando entrara na casa do barão Schormann, partira com as mãos vazias e deixara seu cartão de visita com essas palavras: “Arsène Lupin, ladrão de casaca, voltará quando os móveis forem autênticos.”

Arsène Lupin, o homem de mil disfarces: um atrás do outro; motorista, tenor, bookmaker, adolescente, velho, caixeiro-viajante, marselhês, médico russo, toureiro espanhol.”


O referido conto é narrado na primeira pessoa, mas logo nas primeiras páginas fica quase óbvio que o narrador é o próprio Lupin. E quando isso se confirma e sua prisão ocorre - reparem bem, isso no conto de apresentação do personagem -, é difícil para o leitor reprimir uma certa decepção, mas que irá se dissipar nos contos seguintes; pois percebemos que sua prisão e o próprio conto introdutório, fazem parte de uma estrutura maior e sinérgica com as outras histórias do livro. Nos dois contos seguintes: “Arsène Lupin na prisão” e “A fuga de Arsène Lupin”, o personagem se nos apresenta com toda sua perspicácia, genialidade, senso de humor e ironia, que iriam imortalizá-lo nas décadas seguintes, planejando, de dentro da prisão, um grande assalto, brilhantemente arquitetado, e posteriormente fugindo da prisão, usando de uma artimanha que incluo dentre as maiores peripécias já criadas pelo gênero. Só mais uma observação antes de seguirmos adiante; apesar de descobrirmos com facilidade que Lupin é o narrador do primeiro conto, isso não diminui de maneira nenhuma seu mérito, pois como já dissemos, este primeiro conto faz parte de uma rede de outros contos que se completam para formar um todo coerente. E em momento nenhum foi a intenção de Leblanc nos surpreender com a revelação da identidade do narrador. O autor francês sem dúvida foi o pioneiro neste artifício, que serviu de clara inspiração para a Dama do Crime, Agatha Christie, criar seu assassino narrador em O mistério de Roger Ackroyd, aí sim deixando o leitor de queixo deslocado no momento da revelação.


Uma das grandes contribuições e inovações de Leblanc e seu personagem para o gênero foi, indubitavelmente, a criação do anti-herói, do ladrão-detetive. Sherlock Holmes e outros detetives antes e depois dele, como Dupin, Poirot, Maigret, etc, sempre usaram seu raciocínio lógico, sua inteligência devastadora, sua ironia, presunção e suas análises dedutivas, para prender o bandido. Em Leblanc, seu personagem faz uso das mesmas qualidades e características para se apropriar do alheio, enganar a polícia, e muitas vezes, ajudá-la a prender bandidos “maus”, deixando todos perplexos com suas habilidades. Não raras vezes Lupin utiliza-se de uma ironia que confunde suas fronteiras com o deboche, com o objetivo de expor seus adversário ao ridículo, mas sempre com muita elegância e cavalheirismo, pois ele é o Gentleman Cambrioleur. Como quando, ainda preso, alerta o detetive Ganimard, o mesmo que efetua sua prisão, sobre sua iminente fuga:


“ - Arsène Lupin - observou Ganimard -, você está se divertindo à minha custa.

- Ganimard - afirmou Lupin -, hoje estamos na sexta feira. Na quarta, irei fumar meu charuto na sua casa, na rua Pergolèse, às quatro da tarde.

- Arsène Lupin, vou esperar você.

Deram-se as mãos como dois bons amigos que se respeitam adequadamente e o velho policial andou na direção da porta.

- Ganimard!

- O quê?

- Ganimard, você esqueceu seu relógio.

- Meu relógio?

- É, ele se perdeu no meu bolso.

Devolveu-o, desculpando-se.”


Nos contos seguintes, “O viajante misterioso” e “O ‘colar da rainha''', Leblanc continua nos descortinando as características da personalidade de seu personagem e nos apresentando seu passado. No primeiro Lupin enfrenta Lupin, e o falso rouba o verdadeiro. Lupin ajuda a polícia, ou poderíamos dizer o contrário, a encontrar o falso Lupin que o roubara. No fim da aventura os jornais publicam a seguinte nota:


“Ontem nos arredores de Buchy, após vários incidentes, Arsène Lupin fez a prisão de Pierre Onfrey. O assassino da rua Lafontaine acabava de assaltar, na estrada de ferro de Paris ao Havre, a sra. Renaud, mulher do subdiretor do serviço penitenciário. Arsène Lupin devolveu à sra. Renaud a sacola que continha suas jóias e recompensou generosamente os dois agentes de Süreté que o ajudaram durante essa dramática detenção.


Arsène Lupin não é um assassino, não usa armas, raramente é violento, e muitas vezes funciona como uma espécie de Robin Hood, ajudando até mesmo o governo francês, como em um dos melhores contos do livro, “O sete de copas”, no qual, além de recuperar os planos de um submarino que foram vendidos para uma nação inimiga, ainda abre, com vinte mil francos, uma subscrição para a fabricação do artefato de guerra na França:


“Arsène Lupin resolveu o último problema que Salvator apresentou. De posse de todos os documentos e planos originais do engenheiro Louis Lacombe, ele os fez chegar às mãos do ministro da Marinha. No momento, ele abre uma subscrição com o objetivo de oferecer ao Estado o primeiro submarino construído a partir desses planos. Ele próprio abriu a subscrição com a soma de vinte mil francos.


Em o “O colar da rainha”, Leblanc usa de seu talento para criar e solucionar “crimes de quarto fechado”, para nos explicar as origens de seu herói/anti-herói. Aqui vemos como Lupin garoto realiza seu primeiro roubo, e como volta à cena do crime anos depois para escarnecer das pessoas que humilharam sua mãe. Este conto mostra a origem do ladrão, sua motivação e seu modus-operandi; e mais uma vez, o que não é raro em suas histórias, Lupin devolve o produto do roubo: “O colar da rainha, a célebre jóia roubada há tempos da família Dreux-Soubise, foi recuperada por Arsène Lupin. Arsène Lupin rapidamente devolveu-a a seus legítimos proprietários. Não é possível deixar de aplaudir esta atenção delicada e cavalheiresca.” (Écho de France).



Maurice Leblanc demonstra um grande talento narrativo, não só ao criar as tramas complexas de assaltos, fugas e deduções de seu personagem, mas de também, em pouco menos de 200 páginas e nove curtas narrativas, nos apresentar um personagem intrigante em toda sua totalidade. Lupin é um homem vaidoso, que não raras vezes usa a imprensa para se autopromover, seja como ladrão, seja como benfeitor, fazendo assim que a sociedade tenha por ele sentimentos contraditórios, uma relação de amor, ódio, admiração e orgulho. Alguns contos não são brilhantes em sua trama, como “O cofre-forte da senhora Imbert”, onde nos é narrado o primeiro grande roubo do Lupin adulto, mas servem de forma fundamental para a montagem do perfil e da história do personagem que nos está sendo apresentado pela primeira vez neste livro e já nos parece um velho conhecido. Neste conto Lupin é enganado e usado por um velho casal, como conta, anos depois para seu amigo, que lhe serve de biógrafo de suas aventuras, no melhor estilo Watson:


“- Sim meu caro, mil e quinhentos francos! Não somente não recebi um único centavo do meu pagamento, mas, ainda por cima, ela emprestou de mim mil e quinhentos francos! Todas as minhas economias de jovem! E você sabe por quê? Pasme… Para seus pobres. É como eu lhe digo! Para os pretensos infelizes que ela ajudava, sem que Ludovic soubesse! E eu caí nessa! É cômico, não? Arsène Lupin depenado em mil e quinhentos francos e depenado pela boa senhora de quem ele roubou quatro milhões de títulos falsos! E quantos arranjos, esforços e artimanhas geniais foram precisos para chegar a esse resultado! Foi a única vez em que fui enrolado na minha vida (aqui Leblanc se equivoca; por ser seu primeiro livro, o próprio autor não poderia prever que seu personagem seria enganado outras vezes na longa série de livros que viriam após este de estreia). Mas puxa! Dessa vez foi para valer, de forma limpa e a alto preço!...”


O autor francês tinha a pretensão de ser um grande escritor de livros “sérios”, como seus amigos de juventude, ninguém menos que Gustave Flaubert e Guy de Maupassant. Chegou a escrever alguns romances que não teve uma boa acolhida, e um livro de contos bem recebido pela crítica; mas foi quando recebeu o convite de Pierre Laffitte da revista Je sais tout, que sua história mudou e seu nome entrou para o panteão dos grandes escritores franceses. Sem dúvida seu estilo e a forma com que trabalhava a língua francesa não estava à altura de um Maupassant e muito menos de um Flaubert, e nem suas histórias devassam os meandros da alma humana como as de seus amigos e outros grandes escritores franceses; mas sua prosa é fluida, limpa e clara, e faz um pano de fundo que adere perfeitamente ao nosso charmoso, cínico e irônico ladrão cavalheiro. Isso sem falar do delicioso cenário da belle époque, momento histórico e estético em que se passam as aventuras de Lupin.



Muitas vezes Leblanc, assim como seu colega de ofício do outro lado do canal da mancha, Sir Arthur Conan Doyle, sentiu-se frustrado com suas histórias, que pertenciam a um gênero que sempre foi amado pelos leitores mas desprezado pela crítica. Tanto como Doyle, Leblanc queria ser reconhecido por seus livros “sérios”, e assim como o autor inglês, também tentou matar sua criação; mas depois, como também fez Doyle, o ressuscita . Aliás, Leblanc chega a pedir a autorização de Conan Doyle para usar o seu personagem, Sherlock Holmes, em uma história que narraria um embate entre este e Arsène Lupin, o que foi, obviamente, negado pelo inglês, pois os dois personagens, apesar de parecidos em muitos aspectos, até mesmo no senso de humor - mais contido em Holmes -, mas principalmente no brilhantismo de suas mentes dedutivas, são antagônicos em sua essência. Apesar de Lupin solucionar enigmas, assim como Holmes, ele também os cria, e seu objetivo é roubar e não ser pego, sendo que o de Holmes é pegar o criminoso (é bastante emblemático o fato de um escritor inglês ter criado o mais famoso detetive da literatura, circunspecto na essência de sua personalidade, e um escritor francês ter criado o mais famoso ladrão dessa mesma literatura, com seu perfil irônico e debochado. Ambos representam os estereótipos que por décadas o inglês criou em relação ao francês e vice-versa). Uma luta entre os dois poderia ter apenas um vencedor. E realmente seria triste para os leitores e admiradores de ambos ver um dos dois ser batido e humilhado pelo adversário. Contudo Leblanc cria um artifício até hoje mal visto pelos admiradores de Sherlock Holmes. Leblanc cria o personagem Herlock Sholmes, com a mesma personalidade e características físicas do seu duplo inglês. Para os desavisados é até um tanto cômico, ridículo mesmo, o nome criado por Leblanc para seu detetive, mas o autor francês, na medida do possível, respeita a criação de Doyle, e no romance Arsène Lupin contra Herlock Sholmes, podemos ver o embate dos dois, e como era previsível, até mesmo para Doyle, Lupin leva a melhor. Arsène Lupin, o ladrão de casaca, finaliza com o conto “Herlock Sholmes chega muito tarde”, onde podemos entrever um pouco da intrigante e cativante personalidade de Sholmes/Holmes. Este é tripudiado por Lupin de um lado e se deixa tripudiar por outro, ao ter Lupin nas mãos e deixá-lo escapar, pois segundo Sholmes: “... quando se trata de um adversário como Arsène Lupin, Herlock Sholmes nunca aproveita as ocasiões, ele as cria…” Ao voltar para o castelo, após descobrir como Lupin desvendou o mistério e arquitetou o roubo, Sholmes recebe um pacote das mãos de Devanne, o anfitrião, endereçado a ele por parte de Arsène Lupin:


“- Um relógio - disse Davanne -, será que por acaso?...

O inglês não respondeu.

- É o seu relógio! Arsène Lupin lhe devolve o seu relógio! Mas, se o está enviando, é porque o havia pego… Ele pegou seu relógio! Ah, essa é boa, o relógio de Herlock Sholmes roubado por Arsène Lupin! Meu Deus, isso é engraçado! Não, é verdade… desculpe-me...mas é mais forte do que eu.

E depois de muito rir Devanne afirmou com um tom convicto:

Oh! é um homem e tanto, em verdade!

O inglês não se pronunciou. Até Dieppe, ele não proferiu nenhuma palavra, os olhos fixos no horizonte fugidio. Seu silêncio foi terrível, insondável, mais violento do que a raiva mais selvagem. Na estação ele disse simplesmente, sem cólera dessa vez, mas com um tom em que se percebia toda sua força de vontade e energia:

- Sim, é um homem e tanto, e um homem sobre os ombros do qual eu teria prazer em colocar as mãos que agora estendo para o senhor, Sr Devanne. E acho, veja o senhor, que Arsène Lupin e Herlock Sholmes se encontrarão novamente um dia ou outro… Sim, o mundo é muito pequeno para que eles não se encontrem novamente… e nesse dia…”



A boa literatura não tem gênero ou subgênero específico e exclusivo. Vários elementos, que vão da forma até o conteúdo, passando por muitas outras características, como a composição dos personagens, por exemplo, compõem uma grande obra literária. Na história da literatura temos diversos grandes autores que se dedicaram exclusivamente ou esporadicamente ao gênero policial: Agatha Christie, Conan Doyle, Edgar Allan Poe, George Simenon, Maurice Leblanc, mais recentemente o cubano Leonardo Padura, são alguns nomes que podemos citar. Todos estes autores têm uma grande qualidade, a capacidade de nos contar uma história, de prender nossa atenção, de criar um mistério que só será desvendado no fim, de nos dar todos os elementos para descobrir o que está sendo escondido, e mesmo assim, como um mágico, um prestidigitador, nos surpreender ao final, nos fazendo assim pensar e refletir sobre aquela solução, e nos deixar um sorriso irônico no rosto, de quem foi docemente enganado, como o público de um show de mágica: “mas que diabos, como ele fez isso!?” Maurice Leblanc não é nenhum Flaubert , mas que diabos, como ele cria essas histórias!? E este Arsène Lupin!? Com certeza não é nenhuma Madame Bovary, mas com seu carisma, é uma criação digna de um grande escritor.


(A edição usada para este pequeno ensaio é a da Editora Ática, terceira impressão da primeira edição, datada de 2005. Diversas editoras no Brasil publicam as obras de Maurice Leblanc, que já caíram em domínio público. Até mesmo em bancas de revista podem ser encontradas edições mais simples e com traduções duvidosas, claro.)






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