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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

ARTHUR & GEORGE

Atualizado: 25 de ago. de 2020





ARTHUR & GEORGE

Julian Barnes



À SOMBRA DE UM PERSONAGEM


O Arthur do título deste premiado romance de Julian Barnes, é Sir Arthur Conan Doyle, o criador de um dos personagens mais icônicos da literatura moderna: o detetive Sherlock Holmes. George, é George Edalji, um obscuro advogado da região de Birmingham, descendente de indianos e contemporâneo do famoso escritor londrino. O que os une? Uma injustiça sofrida pelo segundo.


Julian Barnes deparou-se, poucos anos antes de escrever este romance, com um caso que mexeu profundamente com a opinião pública inglesa nos primeiros anos do século XX: o caso Edalji; mas que estranhamente tinha sido completamente esquecido com o passar das décadas, mesmo tendo a participação efetiva de Conan Doyle e outras personalidades do mundo intelectual e artístico da época, com o objetivo da obtenção do indulto para George Edalji. Motivado por uma grande curiosidade e espírito investigativo, Barnes debruçou-se sobre documentos e jornais da época - como ele mesmo esclarece em um breve posfácio: “Exceto a carta de Jean para Arthur, todas as cartas citadas, quer assinadas ou anônimas são autênticas, bem como as citações de jornais, relatórios do governo, atas do parlamento e todos os livros e artigos de Sir Arthur Conan Doyle. Gostaria de agradecer ao sargento Walker, da chefatura de Stafforshire, aos arquivos da cidade da Biblioteca Central de Bimingham…” -, assim como também realizou uma minuciosa pesquisa biográfica acerca da vida de Conan Doyle. O resultado deste esforço é este típico exemplar de um misto de romance histórico e biográfico


O autor desenvolve sua história em contraponto. Os sub-capítulos são quase todos - com exceção de alguns poucos dedicados aos policiais responsáveis pelo caso - nomeados, alternadamente, com os nomes dos personagens principais: Arthur e George. Desta maneira a história inicia-se com um retrato dos personagens em suas infâncias, diametralmente opostas, passando pela adolescência até a idade adulta. Os percursos dos dois personagens só vão se cruzar na página 259. Até este ponto, Barnes nos narra, de forma entrelaçada, a perseguição que a família Edalji começa a sofrer no final do século XIX, recebendo cartas ameaçadoras, encomendas inusitadas, anúncios difamatórios em jornais da região, além de pichações em sua residência e na paróquia em que o pai de George trabalhava como pastor; paralelamente nos é contada a história de Conan Doyle, desde seus anos na faculdade de medicina, onde começou a se destacar como um grande esportista, até quando se torna um escritor de renome nacional e mundial.


Sir Arthur Conan Doyle

Em uma reviravolta totalmente incompreensível para a família Edalji, o filho George torna-se suspeito de ter escrito as cartas anônimas enviadas para sua própria família e para um fazendeiro da região. Os anos passam, as cartas ameaçadoras cessam, George forma-se em direito e começa a trabalhar em um escritório em Birmingham, a pouco mais de uma hora de viagem da paróquia de Great Wyrley, onde mora (o pai foi transferido para lá quando George ainda era criança. Desde os tempos de escola, George percebia um preconceito latente por parte das pessoas, mesmo que quando mais velho tentasse negar isso). É neste momento, quando sua vida se encaminha para um rumo equilibrado e ascendente, pois ele já tinha um bom emprego e havia escrito um livro sobre direito ferroviário, é que as ameaças recomeçam: as cartas, os anúncios em jornais e as encomendas endereçadas a casa dos pais; mas agora com um agravante: começam a estripar cavalos na região. Já se passaram sete anos desde as primeiras cartas, mas por uma série de fatores equivocados elencados pela polícia local, George torna-se novamente suspeito dos crimes. No início o jovem não se preocupa com os interrogatórios e a suspeita da polícia, mas a situação vai se agravando gradativamente até que George torna-se o principal suspeito, é detido e vai a julgamento. Barnes dedica dezenas de páginas para expor a investigação errática da polícia e o julgamento, detalhando os embates entre a promotoria e a defesa de George. Finalmente ele é condenado a sete anos de trabalhos forçados, apesar das provas circunstanciais e de possuir um álibi. George, de forma resignada, aceita seu destino e vai para a prisão, onde fica detido por três anos, até ser liberado para cumprir o resto da pena em liberdade.


Ao mesmo tempo - e, reforçamos, utilizando sempre a técnica do contraponto - que o autor vai nos narrando a tragédia de George Edalji, ele nos descortina a instigante biografia de Conan Doyle. Após se formar em medicina, Doyle abre um consultório de oftalmologia que passa o dia praticamente vazio. É quando, para matar o tempo ocioso, começa a escrever as histórias de Sherlock Holmes, personagem inspirado em um de seus professores, que possuía um profundo senso analítico e dedutivo. As histórias começam a fazer sucesso e a situação financeira de Doyle dá uma grande guinada. Em poucos anos ele torna-se um homem rico e famoso. No momento de seu encontro com Edalji, no ano de 1907, Doyle era uma personalidade não só nacional mas mundial; considerado, ao lado se Rudyard Kipling, o maior expoente do mundo literário inglês, e já condecorado como cavaleiro por Sua Majestade. Doyle então vive uma relação feliz e estável com sua esposa e seus dois filhos (apesar da frustração que sempre carregou dentro de si, de ser mais reconhecido pelo seu personagem famoso do que pelos livros de ficção científica e aventuras que escreveu, e dos quais tinha muito mais orgulho do que das histórias de Holmes, a quem matou e foi obrigado a ressuscitar, dada a grande comoção e revolta que isso causou em seu público leitor), até que recebe a notícia que Touie, sua mulher, está com tuberculose. Arthur faz de tudo para salvar a esposa. Faz viagens para estações de tratamento, compra uma casa no campo e passa os dias na expectativa da morte de sua doce e delicada Touie. Então ele conhece Jean. Barnes procura ser o mais imparcial possível e não emitir juízo de valor sobre a postura de Conan Doyle. Este sempre se portou como um cavalheiro com ambas as damas; era grato à mulher e de uma certa forma ainda a amava, mas estava apaixonado por Jean. Eles mantêm uma relação platônica durante nove anos, e só se casam um ano após a morte de Touie. Porém Barnes não consegue impedir que o leitor tenha uma impressão de egoísmo por parte de Doyle, pois apesar de não abandonar a esposa, e - segundo Barnes dá a entender - nem mesmo ter relações sexuais com Jean, ele a leva para frequentar sua casa, a apresenta para seus familiares, viaja com ela e até mesmo em eventos sociais são vistos juntos. Assim que Touie morre Doyle é tomado por uma sensação de culpa e chega até mesmo a colocar em dúvida seu amor por Jean. Sua paixão pela amante morre junto com sua esposa; mas como um cavalheiro, um fidalgo, que tem as paredes decoradas com os brasões dos Doyle, ele iria honrar seu compromisso com Jean. É neste momento de fragilidade emocional que ele recebe a carta de Edalji. Barnes nos esclarece antes que:


“Desde que Sherlock Holmes resolveu o seu primeiro caso, chegam pedidos de todas as partes do mundo. Se pessoas ou bens desaparecem em circunstâncias misteriosas, se a polícia fica mais perdida do que habitualmente, se a justiça falha, parece que o instinto da humanidade é apelar para Holmes e seu criador. Cartas endereçadas à Baker Street, número 221B, são agora automaticamente devolvidas pelo correio com um carimbo de ENDEREÇO IGNORADO, aquelas enviadas para Holmes a/c de Sir Arthur são tratadas da mesma forma. (...) Existem ainda os apelos dirigidos a Sir Arthur Conan Doyle in propria persona, escritos na presunção de que alguém com a inteligência e a astúcia de inventar crimes ficcionais tão complexos deve ser capaz de solucionar crimes verdadeiros. Sir Arthur, quando impressionado ou tocado, ás vezes responde, embora sempre negativamente.”



Devido a isso, Wood, seu secretário, se surpreende quando ele irrompe seu escritório com o dossiê Edalji nas mãos: “Está claro como água - ele diz. O sujeito é tão culpado quanto essa máquina de escrever.” Finalmente, já passando da metade do livro, temos o encontro entre os dois personagens. Doyle fica muito bem impressionado com a postura íntegra de George, que se recusa a achar que seu processo foi distorcido pelo preconceito racial:


  • Sim. - Esta não parece ser a resposta completa. - Mas, eu presumo, dada a origem do seu pai…

  • Sir Arthur, quero deixar uma coisa bem clara. Não acredito que o preconceito racial tenha algo haver com o meu caso.

  • Devo dizer que o senhor me surpreende.

  • Meu pai acredita que eu não teria sofrido como sofri se eu fosse, por exemplo, filho do capitão Anson. Isso, com certeza, é verdade. Mas na minha opinião, isto é apenas um disfarce. Vá até Wyrley e pergunte aos aldeões se não acreditam em mim. De todo modo, se existe algum preconceito, ele está restrito a uma parte pequena da comunidade. Havia uma ou outra manifestação de desprezo, mas quem não sofre isso, de uma forma ou outra?”


Mas Arthur não pensava como George, e a questão racial, para ele, estava no cerne da questão. E assim como Zola, alguns anos antes, ele teria seu caso Dreyfus¹; e ele ia fazer muito barulho, muito barulho mesmo. E também ia assumir o papel do seu mais famoso personagem. A investigação do caso Edalji teve para Doyle o mesmo efeito de iniciar um novo livro. E ele precisava muito disso naquele momento de sua vida. Ele então acompanhado de seu secretário Wood (Woodie), começa a investigar o caso por conta própria. Vai até Birmingham e Great Wyrley, conversa com os policiais, interroga suspeitos, tem uma entrevista com a família Edalji, vasculha os campos e fazendas onde os cavalos foram estripados, analisa minuciosamente os autos do processo, assim como as cartas recebidas pela família, e finalmente, em uma brilhante dedução, digna de seu mais célebre personagem, e sempre acompanhado de seu secretário e amigo, Watson, digo Wood, chega a um nome, que segundo ele, é o verdadeiro culpado. Doyle então parte para a apelação junto ao Ministério do Interior, exigindo o perdão e uma indenização a George Edalji. Contudo as coisas não saem bem como Conan Doyle desejava. Edalji é perdoado e volta a exercer a advocacia, mas em uma conclusão contraditória, o juiz decreta que o acusado é inocente dos crimes de estripar os cavalos, mas culpado por ter escrito as cartas que acusavam a sí mesmo, anos antes.

George Edalji

O caso Edalji, que assim como o caso Dreyfus, mobilizou a opinião pública a favor e contra o réu (Arthur e a opinião pública levaram o caso para o lado do preconceito racial, mesmo contra a vontade de George), teve também o envolvimento de vários

intelectuais e artistas da época, mas ao contrário do caso Dreyfus, caiu completamente no esquecimento após menos de duas décadas. A corte de apelação inglesa foi criada poucos anos depois, tendo o caso Edalji como motivador. Foi esse esquecimento a que foi relegado George Edalji e seu processo, que fez Barnes resgatar a história e criar este excelente exemplar do romance histórico/biográfico. O livro também pode ser lido como um estudo de costumes da sociedade inglesa - tanto a londrina quanto a interiorana - da época vitoriana. Há trechos descritos com extremo apuro e realismo:


“Em Leeds, ele toma o trem para Carnforth, trocando em Clapham pelo de Ingleton. Ela está esperando na estação na sua charrete de vime; veste um casaco vermelho e a touca branca de algodão que passou a usar nos últimos anos. Os três quilômetros de charrete parecem intermináveis para Arthur. A mãe dirige-se constantemente ao seu cavalo, que se chama Mooi e tem excentricidades, tais como passar por máquinas a vapor. Isso significa que as estradas têm de ser evitadas e cada desatenção equina, elogiada. Finalmente, eles entram em Masongill Cottage.


A opção pelo contraponto, que a princípio pode confundir um pouco o leitor acerca das personalidades de Arthur e George, que tendem a se embaralhar, depois de certo tempo se torna agradável e necessária para o desenvolvimento da história no ritmo proposto pelo autor. Em vários momentos nos deparamos também com trechos que podem parecer cômicos, pois quando um autor contemporâneo, do século XXI, resolve escrever um romance ambientado no século XIX, sua percepção é histórica e em perspectiva, o que não ocorreria com um autor do século XIX retratando sua própria época. Como nessa previsão do futuro por parte de Arthur, claramente usada por Barnes de forma crítica e irônica: “Entretanto concordo com seu pai que este novo século deverá trazer avanços extraordinários de natureza espiritual para o homem. Na verdade, acredito que, quando começar o terceiro milênio, as igrejas formalmente estabelecidas terão encolhido e todas as guerras e desarmonias que a existência delas trouxe para o mundo também terão desaparecido.”


A quarta parte do livro, que poderíamos considerar como uma espécie de posfácio, é dedicada a um lado de Sir Arthur Conan Doyle que a grande maioria de seus leitores desconhece, apesar de ter sido algo de grande relevância para a sua vida. Doyle, em um determinado momento de sua trajetória pessoal, mais precisamente após a doença da esposa, começa a se envolver cada vez mais, e de forma mais profunda, com o espiritismo, ou espiritualismo, como chamavam na época. Ele tornou-se um de seus maiores divulgadores e defensores na Inglaterra. Passa a frequentar videntes (ele não discordava que a maioria era composta de impostores, mas como ele gostava de falar, ele precisava só de um único caso, uma única evidência: “A sobrevivência do espírito após a morte. Um único caso e nós provamos para toda a humanidade.”), escrever artigos sobre o assunto, e participa de uma influente associação de espiritualistas (inclusive há boatos e suposições que foi a mando de Doyle, que dois homens esmurraram o ilusionista Houdini - que era um desmascarador de fraudes espíritas e chegou a desafiar o próprio Doyle para realizar um sessão espírita repleta de truques, porém o escritor se recusou -, rompendo seu baço, o que ocasionou sua morte dias depois). Essa sua paixão pelo espiritismo chegou a minar bastante sua imagem na época, chegando ao ponto de, em um dos pedidos feitos pela Scotland Yard para que ele ajudasse a desvendar um mistério, Conan Doyle pegou uma roupa da vítima e levou até uma vidente de sua confiança, para que ela dissesse quem era o assassino.


Contudo, esses “desvios” de Sir Arthur Conan Doyle felizmente ficaram relegados a um segundo plano, e o que ficou para a posteridade foi a imagem de um grande escritor e um homem que se bateu a vida toda por causas que ele considerava justas, como o caso Edalji. Sendo assim, acho que seria totalmente dispensável as 40 páginas finais do romance, que retrata minuciosamente um espetáculo patético, e que não faz jus à história e ao talento de Conan Doyle. Mas enfim, foi uma opção do autor e vale a leitura do episódio narrado, pelo que tem de inusitado: Seis mil pessoas se reúnem em um teatro; a família do escritor, sua mulher e filhos estão presentes, e entre eles uma cadeira vazia, reservada para Sir Arthur Conan Doyle, que seria invocado por uma vidente. George estava presente no teatro, uma forma de se despedir do homem que provou sua inocência.

Arthur, que passou grande parte da vida procurando manifestações de almas desencarnadas, teve uma convivência estreita com um fantasma que o perseguiu por toda a vida, e que tinha até endereço: Baker Street, 221B.




Arthur & George



¹ O caso Dreyfus foi um conflito social que mobilizou a sociedade francesa entre os anos de 1894 e 1906. O capitão Alfred Dreyfus, de origem judia, foi acusado e condenado por traição em 1894; sua condenação foi a prisão perpétua e a degradação para a ilha de do diabo. Dreyfus foi acusado de espionagem e de entregar documentos ao governo alemão. A sociedade e a intelectualidade francesa se dividiu entre os que apoiavam a condenação de Dreyfus e aqueles que defendiam sua inocência. O escritor Émile Zola tomou a frente na defesa do capitão, e através de seus artigos - o mais famoso é o lendário "J’acusse" - publicados nos principais jornais franceses e da ajuda de outros intelectuais, deu início à polêmica. Até que finalmente, após uma minuciosa revisão do caso, em que foi demonstrado claramente erros jurídicos intencionais, Dreyfus foi absolvido e reintegrado à corporação. Até o hoje o caso é um exemplo claro de antisemitismo.




(A edição que serviu de base para este texto é a da Editora Rocco, de 2007, com tradução de Léa Viveiros de Castro. Até agora a única disponível editada no Brasil. O livro ainda está em catálogo e pode ser encontrado nas principais livrarias.)


Obs: Há uma série de produção inglesa, em três capítulos, BASEADA no romance de Julian Barnes, disponível na internet na versão legendada para o português.







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