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CORPOS DIVINOS



CORPOS DIVINOS


Guillermo Cabrera Infante


Uma das grandes e recorrentes polêmicas que envolvem o mundo da literatura, é a secular discussão sobre as publicações póstumas. Até que ponto, ou a partir de qual momento, os herdeiros de um legado literário, sejam esposas, filhos, maridos, amigos, sobrinhos, netos, bisnetos, etc, têm o direito de publicar textos que o autor, por motivos variados e quase sempre de fórum íntimo, resolveu por não permitir que viesse a público. Muitos desses textos, inclusive, encontram-se incompletos, seja na sua conclusão, seja na sua revisão final. Qual o direito ético e moral um herdeiro possui para publicar um texto que o próprio autor não considerou pronto e acabado, ou mesmo relevante - se comparado por ele mesmo com o restante de sua obra - para levá-lo ao prelo? Isso sem falar de outras questões, que envolvem o passar inexorável do tempo, que torna alguns textos datados, defasados, politicamente polêmicos, etc (apesar de que o contrário também pode acontecer, e textos que passaram décadas engavetados, por não encontrarem espaço em seu momento de criação, podem tornar-se obras literárias atuais e de grande relevância).


Muitos devem estar conjecturando, de si para si, se chegaram até aqui na leitura deste pequeno ensaio: Ora, se formos levar isso a ferro e fogo, e contestar o direito dos herdeiros de publicar textos engavetados, o mundo não teria acesso à grande parte da obra de Franz Kafka, como por exemplo, O Castelo e O Processo (estes dois inclusive inconclusos), também seríamos privados da quase totalidade da obra de Fernando Pessoa, cujo famoso baú parece não ter fundo e sempre nos vemos surpreendidos com a publicação de textos inéditos do poeta português. No caso de Kafka, a propósito, o escritor tcheco deixou instruções precisas para seu amigo e depositário de seus manuscritos, Max Brod, que estes deveriam ser queimados após sua morte. Graças aos deuses e à Calíope, Érato, Melpômene e Polímnia, as musas da literatura, Brod não obedeceu o desejo do amigo - de ter seus manuscritos incinerados -, e o século XX não se viu privado de algumas de suas melhores obras literárias. Sem dúvida poderíamos nos estender aqui por páginas e páginas de outros exemplos além dos dois casos emblemáticos citados, e não nego a importância e relevância da argumentação desses leitores, e agradeço diariamente aos deuses e às já citadas musas por terem guiado as mãos desobedientes destes herdeiros “traidores”. Por isso escrevi no início deste texto que o tema era um dos mais polêmicos da literatura, pois existe a sua contrapartida, a publicação, muitas vezes por ganância financeira, de textos engavetados pelo motivo do autor ou autora não os considerarem prontos, acabados e revisados, ou simplesmente dignos de publicação. Não é preciso lembrar que constantemente vêm à luz da editoração obras que não fazem jus à produção literária do autor publicada por ele em vida, sob o seu desejo e por ele revisada. E aqui também os exemplos são vários: Drummond, Hemingway, Proust, dentre outros. Chamamos a atenção aqui para um ponto importante: devido à controvérsia do tema, temos uma miríade de casos distintos, como por exemplo, aqueles em que os familiares, a editora, e muitas vezes até mesmo o público, sabe que o autor vinha trabalhando exaustivamente em uma obra, quando a vida lhe é ceifada repentinamente. Nestes casos, levando em consideração o adiantado da obra e o desejo de publicação por parte do seu autor, justifica-se sua publicação sem mais polêmicas. Contudo, há casos em que os estudiosos e exegetas também irão clamar pelo direito de ler até as listas de supermercado escrita pelos grandes mestres, justificando que assim poderão entender melhor sua obra como um todo orgânico. Como já disse anteriormente, este texto não tem a pretensão de emitir juízos de valor, nem para um lado, nem para o outro, mas sim para levantar novamente esse rico debate, o qual, mesmo que jamais venha a ter uma conclusão definitiva (louvado seja), enriquece sobremaneira o discurso teórico-literário.


A razão dessa minha introdução teórica é simplesmente resgatar a questão: até que ponto alguém tem o direito de publicar um texto literário sem a autorização do seu criador, seja por incapacidade cognitiva ou morte. Em termos mais populares: o cara não publicou a droga do texto em vida por algum motivo, temos o direito de desobedecê-lo? ou a obra de um grande artista se torna pública e mais universal depois de sua morte? Obviamente deixarei essas questões genéricas em aberto e me concentrarei no tema deste ensaio, ou seja, o “romance” Corpos Divinos, de Guillermo Cabrera Infante. Deixando claro que minhas argumentações e pretensas conclusões valem apenas para essa obra e, consequentemente, para fomentar ainda mais a discussão acerca do tema polêmico.


Guillermo Cabrera Infante

Corpos Divinos foi lançado pela primeira vez em 2010, cinco anos após a morte do autor. Na contracapa da edição brasileira, de 2016, podemos ler: “Copyright ₢ 2010 By Herdeiros de Guillermo Cabrera Infante. Todos os direitos reservados”. Mais acima grafei a palavra romance entre aspas (o que não continuarei fazendo até o fim do ensaio), por que o próprio autor deixou escrito: “Eu quis escrever um romance e saiu apenas uma biografia velada.” O livro abrange um curto período de tempo narrativo, entre 1957 e 1959, mas o autor trabalhou nele de forma intermitente durante toda sua vida, apesar de ficar evidenciado durante a leitura que o corpo principal da obra foi escrito nos primeiros anos após os acontecimentos narrados, provavelmente em Bruxelas, entre 1962 e 1965, quando o autor ocupou o cargo de adido cultural de Cuba na Bélgica. Entretanto há passagens que evidenciam que o texto foi revisado e reescrito pela égide das novas relações desenvolvidas entre Cabrera Infante e o regime castrista. Notamos uma grande má vontade do autor em relação ao líder da revolução e seus seguidores, algo que pelas evidências históricas não nos parece claro nos anos seguintes à revolução, já que o autor foi o diretor do jornal oficial do novo governo, o Revolución, inclusive acompanhando a delegação cubana em sua primeira viagem internacional, além, como já foi dito, de ter ocupado um cargo diplomático de relevância no início da década de 60. Devido a esses fatores, temos uma forte convicção que apesar de grande parte do texto ter sido escrito logo após os fatos narrados, ele foi revisto sob as luzes de suas novas visões críticas envolvendo o governo de Fidel Castro; que segundo Infante, não cumpriu o que prometeu, se transformando em uma nova ditadura.


O mau humor do autor em relação a Fidel Castro e seu regime também contamina o perfil de outras figuras históricas ligadas ou simpáticas ao governo, como o mais famoso artista plástico cubano, Wilfredo Lam, e Ernest Hemingway. Sobre este último escreveu:


“ O casal permanecia sentado olhando fixamente para a frente, embora na frente não houvesse nada para olhar, exceto a parede de uma espécie de choça com pretensões de armazém. Imaginei que estivessem falando de coisas íntimas, mas era um pouco pior. Hemingway, consciente de sua importância, não saíra do automóvel para esperar no cais com o resto da cambada. Talvez pensasse que se o vissem esperando isso o diminuiria. Se tem uma coisa que eu odeio são pessoas conscientes de sua importância, sobretudo quando são importantes. Finalmente, ele deixou seu assento e saiu da carruagem.”


O escritor americano aparece em outras partes do livro, sempre de forma pouco lisonjeira.

C

Ernest Hemingway e Fidel Castro

Corpos Divinos, no frigir dos ovos, se resume a uma espécie de diário que abrange os anos de 1957 a 1959, em que Cabrera Infante, através de uma abordagem extremamente sexista, típica do homem latino e do momento em que a obra foi escrita, expõe seus casos amorosos, suas paixões, suas traições a esposa, seus percalços profissionais e suas amizades. O texto deixa bastante evidenciado, para quem conhece a obra do autor cubano, ou que pelo menos leu Três Tristes Tigres e Havana para um Infante Defunto com seus experimentalismos linguísticos (em Corpos Divinos Infante ainda não escreve em Cubano, como ele costumava classificar sua escrita ficcional) e sua forma única e original, pautada em uma estrutura fragmentada, não linear e indeterminada, que o autor iria certamente rever, cortar, alterar, revisar, e tudo o mais que um escritor pode fazer para deixar sua obra pronta para o público. E não o fez. O texto está repleto de passagens repetitivas e trechos que certamente seriam reescritos, como os próprios editores nos avisam em nota:


“ A versão de Corpos Divinos que aqui se publica corresponde ao último manuscrito de um livro no qual Guillermo Cabrera Infante esteve trabalhando, com longas interrupções, desde o período em que foi adido cultural da embaixada de Cuba em Bruxelas até seus últimos dias. Isso é confirmado pelos papéis encontrados com timbre de Kraainem - o município no qual ele morava com Miriam Gómes desde 1962 -, que correspondem fielmente às primeiras páginas do livro que o leitor agora tem em mãos.

Em consequência de seus longos anos de exílio e da doença que padeceu desde 1972 - um transtorno que o obrigou a submeter-se a dezoito sessões de eletrochoque -, o método de trabalho de Cabreira consistia em longas elaborações de uma mesma história, que depois corrigia diversas vezes, ou no próprio manuscrito, ou numa infinidade de cadernos e folhas soltas, com uma caligrafia grande que às vezes lhe servia para desenvolver uma simples frase ou para anotar uma citação que posteriormente incorporaria ao livro.

O que se colige aqui é, pois, a versão datilografada e mais acabada de uma longa sequência de um livro que poderia ter tido muitas páginas a mais ou a menos, conforme a vontade de um autor que, infelizmente, não está mais entre nós para nos oferecer seu texto definitivo. No entanto, o interesse dessas páginas, seu enorme valor testemunhal, justifica que se dê a lume o que, em suas próprias palavras, quis ser ‘um romance e foi apenas uma biografia velada.’”


O livro entretanto ganha uma dinâmica diferente em seu último quarto, tornando-se um documento de extremo valor histórico acerca dos meses que antecedem e que sucedem a revolução cubana. Cabrera Infante narra de dentro, do olho do furacão, os movimentos revolucionários internos em Havana, protagonizados por vários grupos, dentre eles o 26 de julho (ligado a Fidel Castro) e o Diretório. Narra a fuga de Batista, os jogos políticos feitos no país para enquadrar todos os grupos antibatistas, inclusive os comunistas (não bem vistos por Fidel), no processo revolucionário e na composição do novo governo. A viagem feita por Fidel e sua comissão logo após a revolução para diversos países, também nos é narrada de forma bastante detalhada, com flagras do líder cubano em momentos que somente sua comissão teve acesso; mas aqui também temos a exposição da clara antipatia adquirida anos depois por Infante em relação a Fidel e seu regime.


“Depois que terminou sua conferência, Rego foi para seu assento porque Fidel Castro lhe havia indicado, com pouquíssimo tato, que não tinha mais interesse em conversar com ele. Esses repentes eram frequentes em Fidel Castro. Fez um grande escândalo no Rio quando Célia Sanches insistiu para ele usar um cachecol, porque estava fresco e ele podia se resfriar, pondo-a em seu lugar com um ataque de machismo digno do capitão Maraña. Depois, em São Paulo, foi grosseiro com o coitado do Beale, quando ele insistiu para que falasse com um jornalista brasileiro enquanto esperávamos a saída do avião. Nas duas ocasiões ele fez uso muito liberal dos palavrões e revelou o pouco respeito que tinha por todos os seus semelhantes: ele podia amar o povo, como dizia, mas odiava o indivíduo…”


Algo que entretanto já podemos notar neste texto de Infante, que seria o rascunho de seu primeiro romance, mas que se tornou ‘apenas uma biografia velada” - e que o autor, em vida, não considerou pronto para a publicação -, é a presença de um traço marcante que apareceria em todos os seus romances: as dezenas de referências musicais (onde não poderia faltar seu querido Debussy), literárias e, principalmente, cinematográficas, nos deixando entrever o grande autor que surgiria poucos anos depois.


Enfim, o livro tem seus bons momentos e se realiza como um relevante documento jornalístico de um período seminal na história cubana; agradável de ler, tirante as infindáveis repetições de suas aventuras amorosas (tudo indica, inclusive, que Ela, uma das protagonistas, é Míriam Gómes, sua esposa de 1961 até sua morte, em 2005, como ele nos deixa supor no colofão, onde nos narra o destino de alguns dos “personagens” do livro, e termina com a seguinte frase: “Eles, ele e ela, juntaram-se novamente e nunca mais se separaram e viajaram muito e conheceram países estranhos”). Entretanto, a comparação com seus outros livros prontos e acabados, e publicados em vida pelo autor é necessária. E aí Corpos Divinos decepciona o leitor de Guillermo Cabrera Infante. E a polêmica levantada nas primeiras páginas deste ensaio vem lançar sua sombra nestas linhas de encerramento.


Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cabrera Infante e Haroldo de Campos, no Brasil em 1988



( A edição usada como referência para este ensaio é a primeira publicada no Brasil, pela Editora Companhia das Letras, em 2016. O livro ainda está em catálogo e pode ser encontrado nas livrarias físicas e virtuais.)

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