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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA




CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA:

A CONSUMAÇÃO ROMANESCA EXPRESSIONISTA DE LÚCIO CARDOSO



O romance Crônica da casa assassinada, publicado em 1959, é sem dúvida a mais importante obra de Lúcio Cardoso, aquela que Mario Carelli chamou de “consumação romanesca”: o ponto culminante de sua evolução criativa. Tudo nos leva a acreditar que seu processo de maturação durou quase dez anos, pois as primeiras referências à Crônica..., no Diário, datam do início da década de cinquenta. Um romance trabalhado arduamente, feito e refeito, abandonado e resgatado, uma síntese formal e temática de tudo aquilo que o autor vinha desenvolvendo desde Maleita. Segundo Carelli: "Raramente na literatura brasileira a estética presidindo a uma obra ficcional foi tão visivelmente modelada por uma visão interior subvertendo a percepção convencional da realidade".1 Essa "visão interior", subvertedora da realidade perceptiva, aliada à estrutura fragmentada do romance e a uma temática que valoriza a investigação dos estados psicológicos extremos, torna essa obra uma das principais representantes da estética expressionista na literatura brasileira.

O romance é dividido em 56 capítulos que, porém, não recebem este nome. Por uma questão de coerência estrutural e temática estipulada pelo autor, os textos (capítulos) são divididos em diários, depoimentos, confissões, narrativas, memórias e cartas. Estes textos são expostos no romance de forma fragmentada e não linear, obrigando o leitor a um exercício de composição, como se estivesse montando um grande quebra-cabeças. Paira, por sobre essa estrutura fragmentada do romance, uma atmosfera de mistério. Um narrador implícito, que em momento algum aparece de forma direta na história, mas apenas indiretamente, como receptor dos depoimentos e narrativas, reúne os fatos e organiza-os segundo algum tipo de critério próprio, para depois apresentá-los ao leitor. Ou seja, os fragmentos das cartas, memórias, depoimentos, confissões, diários e narrativas chegam até nós como resultado de uma suposta investigação, e da tentativa desse narrador implícito de elucidar os acontecimentos ocorridos na chácara em um passado recente.

Qual mistério esta personagem implícita busca elucidar? Pois, no decorrer da narrativa, vários mistérios se formam, várias perguntas ficam sem uma resposta definitiva: André é realmente filho de Ana? Ou esta teria mentido para padre Justino e André seria, sim, filho de Nina? André é filho de Alberto? O que aconteceu com o suposto verdadeiro filho de Nina, Glael? Esse nome, proferido por Nina, momentos antes de sua morte, é realmente de seu verdadeiro filho? Nina sabe que André não é seu filho? Como, se Ana supostamente trocou os bebês sem o conhecimento de Nina?

A técnica narrativa usada neste romance, aquela mesma que foi eleita como o método de criação da estética expressionista e dos movimentos de vanguarda de uma forma geral, a montagem, impede que o leitor tenha acesso a um significado único e absoluto. Segundo Carlos Eduardo Jordão Machado:

"A montagem 'improvisa' com os diferentes segmentos interrompidos, ao invés de construir fachadas rígidas como a objetividade. Tanto a objetividade quanto a montagem participam do mesmo cenário, que é o que Ernst Bloch denomina 'o espaço vazio’.''2

Por isso, tantas perguntas sem uma resposta pronta e acabada. A estrutura fragmentada da obra faz com que sua significação fique em aberto, sujeita a várias interpretações. O leitor não possui uma visão onisciente dos fatos, a obra é estruturada de uma tal maneira que nós, leitores, somos enredados no mesmo processo de investigação empreendido pelo narrador implícito. Um detalhe que chama a atenção é que esse narrador em momento nenhum se imiscui na narrativa com opiniões ou comentários. Sua única interferência é na forma como conduz os depoimentos com as personagens e na disposição dos fragmentos narrativos, ou seja, na ordem em que os acontecimentos são expostos ao leitor. É como se, parafraseando Walter Benjamim, ele não tivesse nada a dizer, só a mostrar.3

O primeiro capítulo, ou a primeira narrativa, tem como título, "Diário de André (conclusão)", no qual a personagem nos relata sua dor e seu desalento diante da morte de Nina. A partir da segunda narrativa (capítulo), começamos a ter contato com a história propriamente dita, que vai do momento em que Nina conhece Valdo até sua morte. O romance gira em torno da personagem Nina. Sua personalidade e sua história vão sendo construídas para o leitor (e para o narrador implícito, que investiga os acontecimentos do passado envolvendo Nina e a chácara) através das narrativas das outras personagens que gravitam em torno da figura central de Nina.

Em Crônica..., é subvertida a técnica desenvolvida por Srindberg, dramaturgo sueco e um dos precursores da estética expressionista: onde as demais personagens da peça são projeções da mente de uma única personagem. Todas as personagens da Crônica... (com exceção de Demétrio, cuja voz é ouvida através dos relatos das outras personagens) cumprem a função de criar uma imagem de Nina para o narrador implícito e, consequentemente, para o leitor. Esta imagem, que nós, leitores, temos da protagonista, é um amálgama das visões das demais personagens e de sua própria visão sobre si mesma. Para Wilson Martins:

"A personalidade de Nina é um enigma proposto aos demais personagens: de André ao farmacêutico, de Ana ao Padre Justino, do médico à Betty, de Demétrio ao coronel, todos se debruçam apaixonadamente na decifração dessa personalidade."4


Nina, uma mulher da capital, conhece Valdo Meneses, no Rio de Janeiro. Este se apaixona por ela, casam-se e vão morar na chácara da família de Valdo, no interior do estado de Minas Gerais. Desde sua chegada, há um sério problema de convivência e de adaptação de Nina com os habitantes da chácara e com o ambiente interiorano. Nina é um elemento estranho, estrangeira para os moradores da chácara: Demétrio (irmão de Valdo), Ana (mulher de Demétrio) e até mesmo para Valdo, seu marido. O único membro da família Meneses que aguarda a chegada da cunhada com ansiedade é Timóteo (irmão de Valdo e Demétrio), pois ele também é um ser rebelde, que não se adaptou aos rígidos padrões morais da família mineira.

Há uma simbiose natural entre Nina e Timóteo: Nina é a energia que Timóteo necessita para potencializar todas sua carga destruidora, e Timóteo é o ponto de apoio que Nina necessita para exercer sua função inconsciente de "anjo exterminador" (é o próprio Timóteo que a chama dessa maneira, em um trecho do romance já reproduzido aqui) de toda a tradição caduca e de todo o conservadorismo mineiro, representado de forma estoica pela decadente família Meneses. Segundo palavras do próprio Lúcio Cardoso, em entrevista concedida a Fausto Cunha: "Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira."5

A convivência de Nina com os habitantes da casa é tensa. Sua presença provoca, em todos, sentimentos contraditórios. Sua beleza, aliada à sua personalidade forte e independente, faz nascer em Demétrio e em Ana, a paixão e o ódio. Essas duas personagens vivem atormentadas por esses sentimentos contraditórios em relação a Nina. Finalmente, nos dois, o ódio prevalece, e inconscientemente se unem para extirpar o "tumor" que Valdo trouxe para dentro da chácara e da família, e que aos poucos ia destruindo suas bases.

Timóteo é o único habitante da chácara que sabe que Nina não é o "tumor" que corrói as entranhas de sua família: a doença é genética, se encontra no próprio cerne dos Meneses, e a sua destruição seria inevitável. Nina apenas acelera o processo de degeneração endêmica da família Meneses, simbolizada pelo desmoronamento físico da casa. Nina, a casa e os Meneses são consumidos pelo pecado: Nina, pelo seu ato incestuoso, ou melhor dizendo, por deixar que André acreditasse ter cometido o "maior dos pecados" — o incesto —, ao possuir aquela que ele achava ser sua própria mãe; os Meneses, por toda sua soberba materialista, últimos representantes de uma oligarquia decadente, apoiada em um tradicionalismo caduco e anacrônico (Demétrio aguarda por anos a visita do Barão, o que seria uma honra para sua família); e, finalmente, a casa, simbolizando um período da história do país e refletindo em suas paredes e em sua estrutura a decadência de seus habitantes. Lúcio Cardoso, em uma entrevista concedida a Walmir Ayala, diz o seguinte sobre o título de sua obra: “No título, 'Casa' está no sentido de família, de brasão. 'Assassinada' quer dizer, atingida na sua pretensa dignidade pelo pecado. Eis o ponto nevrálgico do drama: o pecado."6


Cena do filme "Crônica da casa assassinada" (1971)


É a presença do mal, prefigurado no pecado, a grande responsável por todo o clima de destruição e degeneração do romance. O mal, como um dos elementos preponderantes da estética expressionista, é representado pelo pecado nesse romance de Lúcio Cardoso. Sendo o pecado, aqui, uma forma de redenção. Ana pergunta a Padre Justino, no auge de seu desespero: "Padre, e eu, não estou salva também, não pequei como os outros, não existi?” (CCA, p. 577). Em Lúcio, o pecado tem um efeito da catarse, de purificação: as personagens se salvam, há a redenção, mas apenas após a sua total destruição:

"(...) ruía a casa dos Meneses (...). Dirão que isso talvez não passasse de impressão exagerada, mas a verdade é que de há muito que eu pressentia um mal qualquer devorando os alicerces da chácara. Aquele reduto, que desde a minha infância eu aprendera a respeitar e admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos, frágil ante a destruição próxima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos próprios venenos que traz no sangue." (CCA, p. 178).


O mal devora os alicerces da chácara (família Meneses/tradição). Ele está argamassado à estrutura da casa/família: a casa como memória. A presença física da chácara liga-se a história pessoal de seus habitantes e sua ruína simboliza o esfacelamento físico e psicológico das personagens. A força simbólica da casa faz com que amores, ódios, invejas e paixões se amalgamem às suas paredes. Com a casa, ruem também seus habitantes, suas histórias e tradições. A personagem Ana mostra plena consciência dessa simbologia:

"Algumas vezes, vencido pela umidade ou simplesmente pelo tempo, uma parte desse reboco desprendia-se, ameaçava cair — e eu, cuidadosamente, o recompunha, colocando-o, reajustando-o ao seu primitivo lugar, tal como se recompusesse uma imagem pronta a se esfacelar, um corpo a que faltariam pedaços, e cuja integridade através dos tempos só sobreviveria assim pelo meu esforço e minha paciência." (CCA, p. 314).


Dentro da temática cardosiana, as personagens de Crônica da casa assassinada habitam um mundo sem Deus, no qual o homem é movido por um mal inerente à sua natureza. Nina, transgressora e monstruosa, deflagra os conflitos que ocorrem no interior da família Meneses. Ela é o elemento desagregador, não o mal em si, mas aquela que desperta o mal que habita adormecido dentro de cada uma das personagens. Em uma carta a padre Justino, Valdo pressente o mal em Nina: "Porta-se como todo o mundo, conversa, passeia — e no entanto, Senhor Padre, há nela qualquer coisa dúbia, e por que não dizer perigosa. Não poderia apontar o que fosse, por que não consiste em elemento preciso." (CCA, p. 265).

Nina, até onde podemos deduzir, limitados por uma estrutura fragmentada que impossibilita a apreensão de um sentido absoluto e incontestável, interrompe a linhagem dos Meneses. Seu suposto filho, André, é filho de Ana — como esta revela a Padre Justino nas últimas páginas do romance — com o jardineiro, Alberto. Além disso, Nina afasta, consciente ou inconscientemente, seu verdadeiro filho — seja o pai Valdo ou Alberto — da influência sufocante e castradora dos Meneses. O final trágico da família Meneses — após serem destruídos os últimos resquícios de sua tradição aristocrata e interrompida sua linhagem — confirma as palavras de Valdo reproduzidas acima, ao ver em Nina a presença de "(...) qualquer coisa dúbia, e por que não dizer perigosa", e faz eco às impressões de Betty, a governanta:

"E apesar de procurar justificar Dona Nina, e tentar encontrar razões para o que ela representava, sentia que este esforço permanecia nulo, e que ela continuava fora de qualquer justificativa, como um escândalo. E para mim, até aquele momento, nada existia pior do que o escândalo — era sob esta forma que se configurava todo o mal." (CCA, p. 280).


Nina: o “anjo da destruição", vaticinado por Timóteo. O mal, aqui representado pelo pecado, deixa um rastro de destruição por onde passa. E Nina é sem dúvida o elemento desencadeador deste processo. Mas ela também é vítima do mal que desperta. O mesmo mal que desfragmenta os Meneses e destrói ou assassina a chácara, também atinge Nina, através de uma doença que recebe, no romance, uma conotação simbólica, pois vai corroendo lentamente as entranhas da personagem, destruindo-a. O mal, uma vez despertado, é implacável. Nem mesmo o elemento de pureza inserido pelo autor na história (Alberto, o jardineiro) escapa de sucumbir à desgraça que paira sobranceira sobre a casa (família) Meneses.

A relação adúltera de Nina e Alberto (ainda que em nenhum momento do romance fique explícito que o adultério de Nina chegou de fato a se consumar: a estrutura fragmentária e a ausência de um narrador onisciente nos impedem, como já foi dito anteriormente, de fazer qualquer afirmação absoluta. Contudo, as narrativas das personagens, principalmente as de Ana Meneses, nos fazem acreditar que Nina e Alberto tiveram uma relação adúltera durante a primeira estada dela na chácara) e a ameaça daquela em deixar a chácara levam Valdo a uma pretensa tentativa de suicídio, usando o revólver que seu irmão, Demétrio, havia deixado, sugestivamente, ao seu alcance, exatamente nos dias em que a tensão entre Valdo e Nina aumentava.

Quais eram as reais intenções de Demétrio? O narrador implícito não nos esclarece, deixando mais uma vez por conta do leitor a interpretação. Demétrio queria que Valdo matasse Nina e assim extirpasse o "tumor" que consumia sua família? Ou queria que Valdo se matasse, deixando Nina livre, e assim ele poderia declarar todo o amor que sentia por ela? Com qual objetivo Demétrio pediu a arma emprestada ao farmacêutico e a deixou à vista de todos na casa?

Após a pretensa tentativa de suicídio de Valdo (pretensa porque fica sugerido que ele atirou apenas para se ferir), Nina aguarda seu restabelecimento e deixa a chácara, voltando para o Rio de Janeiro, grávida (de Alberto? de Valdo?). Alberto se mata após saber de sua partida, com o mesmo revólver que Valdo usara para se ferir, e que Nina jogara pela janela, sabendo que Alberto a estava espreitando. Haveria alguma intenção implícita nesse gesto de Nina? Ela teria incitado Alberto ao suicídio? Há aqui uma indeterminação de sentido, uma abertura a diversas interpretações possíveis por parte do leitor. Segundo Compagnon:

"A ‘insignificância’ ou a perda do sentido, pouco separável, aliás, da recusa da unidade e da totalidade orgânica. O não acabado e o fragmentário convergem para a indeterminação do sentido. (...) caberá ao leitor, ao espectador, decidir-se por um sentido."7


Alberto é o único habitante da chácara que não possui a "alma" atormentada, até mesmo Betty, a governanta, se deixa contaminar pela profunda angústia que envolve a existência dos Meneses. Alberto não busca exteriorizar seus estados íntimos de tensão, pois é uma natureza simples, e por isso morre, ao se ver engolfado por aqueles seres atormentados que não aceitam a vida apenas em sua superfície límpida e sem segredos — como ele aceitava —, mas que procuram o mistério das coisas, a essência íntima, os estados psicológicos extremos de tensão e desespero.

Após a partida de Nina, Ana propõe a Valdo e Demétrio ir ao Rio de Janeiro para acompanhar a gravidez da concunhada. Meses depois, retorna sem Nina, mas com o filho desta nos braços (pelo menos assim o narrador faz o leitor crer até as últimas páginas do romance). O menino, André, cresce longe de sua suposta mãe, e só vai conhecê-la anos depois, já rapaz, quando Nina, doente, volta para a chácara.

O regresso de Nina é o segundo movimento do lento processo de destruição da família Meneses, corroída até suas entranhas pelo pecado. A partir deste ponto, Nina e André vivem um ardente e culpado caso de amor. André não consegue ver naquela mulher bela e atraente, que ele acabara de conhecer — e que até então havia sido envolvida numa aura de segredo e mistério para ele —, a sua mãe. É, sem dúvida, nessa segunda estada de Nina na chácara, que o autor explora o maior número de elementos e procedimentos caracteristicamente expressionistas: o grotesco e o bizarro, a ênfase aos estados psicológicos extremos, a busca por estados limítrofes de tensão e desespero, a busca da essência, a transcendência do real e, principalmente, a atmosfera de evidente conotação expressionista, envolvendo as personagens e os cenários. Tudo isso sustentado por uma narrativa que tem, na autorreferencialidade e no subjetivismo, duas de suas principais características, onde o desespero e a angústia do autor aparecem refletidos nas atormentadas personagens do romance.

A partir de A luz no subsolo, romance publicado pela primeira vez em 1934, Lúcio Cardoso passa a valorizar mais a investigação de estados psicológicos extremos e a análise de dramas humanos, através de um processo de imersão nos estados íntimos dos ser. Com isso, o autor buscava devassar as emoções, os sentimentos e as relações humanas, e não descrever situações. Estas cumprem o papel de fornecer as condições materiais para que o autor possa empreender seu trabalho de investigação. Os cenários habitualmente utilizados por Lúcio Cardoso são pobres ou decadentes, e descritos com economia de detalhes. O que mais se destaca é a atmosfera criada: lúgubre, sombria e opressora.

Em Crônica da casa assassinada, praticamente toda a ação se passa na chácara dos Meneses. Esta é descrita — levando em consideração que a casa da chácara e a própria chácara, com seu pavilhão e seus jardins são personagens centrais na trama, como indica o próprio título do romance — de forma quase que superficial. O narrador usa um artifício sutil para contornar o problema das descrições pormenorizadas dos cenários — que cumpririam a função de situar o leitor no espaço físico em que se desenrola a trama — O referido artifício citado é o croqui da chácara, que antecede o texto do romance. É como se o narrador nos dissesse: vocês querem saber como é a chácara, a disposição dos cômodos, suas proporções, a localização da casa e do pavilhão no terreno? Pois bem, aí está! Uma planta com todos os detalhes, agora não me aborreçam mais com ninharias, deixem que eu me dedique ao que realmente interessa: o homem e sua dor “essencial”.

Os cenários, os ambientes e as personagens são mais expressos do que descritos. As outras personagens não descrevem Nina, mas sim, expressam os sentimentos e sensações causadas por sua beleza e por sua presença marcante. Betty assim se expressa em relação à Nina:

"(...) creio que fui eu a primeira pessoa a vê-la, desde que desceu do carro e — oh! — jamais poderei esquecer a impressão que me causou. Não foi um simples movimento de admiração, pois já havia deparado com muitas outras mulheres belas em minha vida. Mas nenhuma como esta conseguiu misturar ao meu sentimento de pasmo essa leve ponta de angústia, essa ligeira falta de ar que, mais do que a certeza de me achar ante uma mulher extraordinariamente bela, forçou-me a reconhecer que se tratava também de uma presença — um ser egoísta e definido que parecia irradiar a própria luz e o calor da paisagem. (nota à margem do manuscrito: ainda hoje, passado tanto tempo, não creio que tenha acontecido outra coisa que me impressionasse mais do que esse primeiro encontro). Não havia apenas graça, sutileza, generosidade em sua aparição: havia majestade, não havia apenas beleza, mas toda uma atmosfera concentrada e violenta de sedução. (grifo nosso)" (CCA, p. 61-62).


André, em seu diário, por diversas vezes se manifesta em relação aos sentimentos e sensações causados pela presença de Nina. Como as outras personagens, André não detalha os dotes físicos de Nina, não a descreve, mas, literalmente, a expressa:

"Ela se achava de pé, imóvel, e eu a contemplava com uma admiração que atingiu os limites do embevecimento. Jamais vira ser tão belo, e não era uma beleza isolada, uma soma de seus traços e perfeições — era um conjunto formado de tudo o que participava dela, desde os cabelos, os olhos, a pele, até a menor vibração que escapava do seu ser." (CCA, p. 225).


Ao terminar a leitura de Crônica da casa assassinada, o leitor é tomado por uma estranha e agradável sensação: por muito tempo as personagens, e aqui eu incluo a própria chácara com sua casa principal, o pavilhão e os jardins, continuam habitando nosso imaginário de forma indelével. Apesar da óbvia economia descritiva, a expressividade do texto e a indefectível atmosfera que envolve personagens e cenários permitem que estes tenham uma presença muito mais marcante e duradoura do que se fossem descritos com riquezas de detalhes. Nina sobrevive em nossa memória não como uma mulher de olhos grandes ou pequenos, de lábios finos ou grossos, mas como “(...) uma criatura bela, de uma beleza mórbida (...).” (CCA, p. 152), ou como escreveu Betty, a governanta: “(...) não poderia dizer jamais que fosse uma beleza completa, um resultado total: a patroa era bela em detalhes, traço a traço, com uma minúcia, um exaspero quase na perfeição dos seus motivos”. (CCA, p. 70).


Chácara real da família Pentagna: que inspirou Lúcio


A atmosfera lúgubre e trevosa, criada para envolver personagens e cenários, carrega em seu âmago algo de trágico e misterioso. As personagens caminham envoltas em névoa, em escuridão — mesmo quando as cenas são diurnas, pois é uma escuridão que se projeta do íntimo das personagens, configurando o ambiente externo: é a expressão interior determinando o exterior —, por corredores escuros e abafados ou em cômodos úmidos e decadentes:

"Nunca havia pisado naquele sítio, que me parecia excessivamente inóspito, condenado ao abandono — e agora, diante da porta, admirava-me que ele, tão moço, pudesse viver em local de aparência tão lúgubre. Ao longo da parede, toda coberta de era, existiam duas ou três janelinhas gradeadas, mas todas tinham as grades quebradas, deixando perceber que ainda assim a luz era escassa no interior, e que a umidade devia enegrecer-lhe as paredes." (CCA, p. 194).


O processo de ruína da casa, como contraponto à desestruturação da família Meneses, aliada a estados íntimos de desespero e agonia que estão refletidos nos ambientes externos, são determinantes para a instauração de uma atmosfera expressionista, onde o mistério e o trágico caminham lado a lado. Segundo Adonias Filho:

"Há, efetivamente, uma atmosfera, não no sentido exterior do "décor" é verdade, mas no sentido em que a exige a tragédia em sua vivência clássica: tessitura de emoções violentas que transmitindo-se de uns para outros, provoca as reações individuais em uma só reação coletiva. (...) Essa atmosfera responde pela repercussão da tragédia em Crônica da casa assassinada."8


Lúcio também faz largo uso do grotesco e do bizarro nesse romance. Aqui, estes elementos expressionistas estão presentes na degeneração da carne — simbolizando o pecado —, e na enxúndia travestida — simbolizando a transgressão. No primeiro caso, temos a doença de Nina, corroendo lentamente seu corpo e afetando-lhe exatamente naquilo que era o seu instrumento de pecado: a beleza. Para Besançon:

"Sem dúvida, segundo suas reminiscências religiosas, o escritor quis simbolizar os estragos causados pelo pecado e sua sanção sobre a carne, através das transformações de um corpo cuja sedução fora antes mostrada."9


No segundo caso, temos Timóteo, ser bizarro e grotesco em sua transgressão homossexual.

Timóteo, aos olhos de Betty:

“(...) se bem que ainda não estivesse tão gordo quanto ficou mais tarde, já a enxúndia alisava-lhe e amaciava-lhe os traços, deteriorando as saliências, criando golfos e cavando anfractuosidades de massa cor-de-rosa, o que o fazia aparecer com o esplendor de uma boneca enorme, mal trabalhada pelas mãos de um oleiro e amolentado pela preguiça". (CCA, p. 54).


E Ana, narrando, literalmente, a decomposição de Nina:

"À medida que avançava, o cheiro tornava-se mais persistente, revelando-se o laboratório onde se processava sua lenta composição. E aquele ainda não era, devo esclarecer desde já, o mau cheiro contínuo, insinuante, que durante muitos e muitos dias nos perseguiu, impregnado roupas, corpos, móveis e utensílios, tudo enfim, com seu açucarado alento de agonia. (...) Já havia visto mortes se escoarem melancólicas, secas e sem cheiro — minha própria mãe, por exemplo, vitimada por um ataque cerebral — mas era a primeira vez que via alguém assim se decompor como sob o esforço de violenta combustão interna." (CCA, p. 472).


Em Crônica da casa assassinada, o grotesco e o bizarro, geralmente relacionados à figura de Timóteo e à degeneração física de Nina, causada pela doença, vêm acompanhados de outro marcante elemento da estética expressionista: a distorção das formas. O grotesco, em Timóteo e na Nina agônica, é representado através das distorções das formas destas duas personagens. Timóteo: "Não era propriamente gordo, mas imenso (...).” (CCA, p. 541); "Nem mesmo seus olhos eram fáceis de perceber naquela massa humana tratada pelo descaso e pela preguiça.” (CCA, p. 541). E em Nina: "Veio-me então um súbito terror de ficar ali, sozinha com aquela presença que se decompunha." (CCA, p. 473); "Desfalecida em meus braços, ela arquejava e pelos meus punhos, pelos meus dedos escorria um líquido que não era sangue e nem pus, mas uma matéria espessa (...)." (CCA, p. 462).

Além dos elementos expressionistas apontados até aqui — a atmosfera expressionista (o clima lúgubre e asfixiante que envolve toda a chácara); a presença do mal (Nina como o elemento estrangeiro, o anjo da destruição); a distorção das formas (a decomposição da Nina agônica); o grotesco e o bizarro (Timóteo e sua atitude transgressora e transformista); o trágico (representado pela destruição da casa, de Nina e da própria família Meneses, vitimados pelo pecado); a morte (como uma sombra que perpassa todo o romance, desde a primeira linha: "Meu Deus que é a morte", até as últimas, com a morte de Ana); o fragmentado (pela própria estrutura do romance, dividido em trechos de diário, confissões, cartas, etc) — o romance Crônica da casa assassinada apresenta, de forma mais discreta, outros elementos caracterizadores da estética expressionista como, por exemplo, a ignorância da lógica e da plausibilidade ( principalmente na questão que envolve a maternidade de André, como analisaremos mais à frente); o fervor febril e o vitalismo (no discurso de algumas personagens, como Timóteo, por exemplo); a busca por estados extremos de tensão e desespero (as personagens são levadas a situações limítrofes pelo autor); a transcendência do real (a chácara dos Meneses se situa em um ponto à margem, no tempo e no espaço, transcendendo a realidade externa aos seus muros); dentre outros que estão presentes no romance de forma ainda mais sutil.

Contudo, foi essa presença explícita — pelo menos essa é a nossa interpretação — de um número grande de elementos e procedimentos expressionistas, que talvez tenha levado o crítico literário Alfredo Bosi a dizer o seguinte sobre este romance: "Uma frondosa metaforização que se entrega aos apelos do morbo, do desfazimento carnal e, no limite, busca a expressão do cupio dissolvi, enforma a escrita da Crônica da casa assassinada para a qual já se pensou na qualificação de ‘Expressionista’".9

Nos últimos capítulos do romance, o leitor vislumbra a derrocada da família Meneses em toda a sua magnitude. Os derradeiros vestígios de integridade dos Meneses são pulverizados com a escandalosa encenação de Timóteo sobre o corpo de Nina, na presença do Barão (símbolo da decadente nobreza rural). Em Crônica..., como o próprio Lúcio afirmou em uma entrevista, “seu inimigo era Minas Gerais, ou melhor dizendo, a família mineira”.10

Quem é o grande vilão dessa história? Nina? Ana? Timóteo? O verdadeiro responsável por todas as desgraças, sofrimentos e destruições físicas e psicológicas é a família Meneses — representada fisicamente pela chácara —, que simboliza o conservadorismo e a preservação de valores anacrônicos. Os Meneses são sustentados por bases rígidas, inflexíveis e ultrapassadas. É essa tradição familiar que exclui Timóteo do convívio social, que condena Valdo, Demétrio e Ana a uma vida isolada na chácara. É essa tradição caduca e sem sustentação financeira e ideológica dos Meneses que desloca Nina de seu meio e busca adaptá-la a uma vida estática e sem perspectivas.

É essa mesma família que, com seu estilo de vida baseado em valores superados, deforma a personalidade do adolescente André e leva seu suposto pai, Alberto, ao suicídio. Este último, uma pobre vítima da guerra particular travada entre Nina e a família Meneses. A consequência dessa luta é a morte de ambos: de Nina e da família, representada pela casa. Esta se esfacela junto com Nina e os Meneses, vitimados pelo pecado.

As últimas palavras de André são emblemáticas para compreendermos a atmosfera de destruição que envolve Nina, os Meneses e a chácara: "Porque o Cristo é mentira" (CCA, p. 562). Em Lúcio, a ausência de Deus é duramente punida.

Neste romance também percebemos a presença marcante de outras duas importantes características da estética expressionista de vanguarda: o conflito familiar — representado pelas tensões existentes entre Valdo e André; Timóteo e os irmãos, Nina e Valdo — e o ataque aos valores tradicionais. No caso do expressionismo alemão, os valores combatidos são aqueles defendidos pela burguesia. Já em Crônica da casa assassinada, os valores combatidos são aqueles ligados às tradicionais famílias oligárquicas do interior mineiro.*

O romance poderia muito bem terminar com a fuga de André e a solidão de Valdo no jardim da chácara, ante o cortejo fúnebre de Nina. Porém, é reservada uma surpresa ao leitor na última narrativa. As revelações de Ana feitas a padre Justino no capítulo intitulado "Pós-escrito numa carta de padre Justino", obrigam-nos a uma reavaliação de nossas interpretações da obra, exigindo uma releitura, agora sob uma nova perspectiva, baseados nas surpreendentes revelações de Ana.

Anos após os acontecimentos narrados no romance e após a destruição da chácara e da vila pela epidemia e pelo bando de Chico Herrera, Ana, no leito de morte, faz sua última confissão a padre Justino. Ela revela que André não é filho de Nina, mas, sim, seu filho, com Alberto, o jardineiro. Durante o período que ficou no Rio de Janeiro acompanhando a gravidez de Nina — pelo menos era isso que todos acreditavam na chácara — ela gerou André, e o levou para a casa dos Meneses como filho de Nina. O leitor, de posse dessa nova informação, se vê obrigado a uma reavaliação de sua primeira leitura do romance, pois o pretenso eixo central em que se apoiava a narrativa, desmorona. Não há incesto, mais ainda há pecado, por parte de André, que acredita ser Nina sua mãe e, principalmente, por parte de Nina, que permitir que André acredite que está vivendo em pecado, e se martirize mortalmente por isso. Ana desconfiava, ou melhor dizendo, tinha quase certeza de que Nina sabia que André não era seu filho:

"Padre, esta é uma desconfiança que trago comigo: Nina devia saber que André não era seu filho. Uma vez — (e eu próprio, ouvindo o que ela dizia, senti que estremecia ante a força de uma recordação que chegava com tal ímpeto) — fui surpreendê-la em prantos, fechada num cubículo que dava para o corredor. (...) Nina estava sentada, e tinha um papel amassado entre as mãos, provavelmente uma carta. (...) Precipitei-me e tentei arrancar-lhe o documento das mãos, ela defendeu como pôde e, vendo afinal que não tardaria a me apoderar dele, deixou escapar um grito, um único grito, e que era um nome de ho0mem: "Glael"! Imobilizei-me, sentindo ao mesmo tempo que ela designara um ser sagrado, que eu não conhecia, e que provavelmente era aquele filho verdadeiro, gerado em sua carne." (CCA, p. 576).


Aqui, gostaríamos de abrir um parêntese acerca deste nome pronunciado uma única vez em toda a narrativa, mas que representa uma "personagem” de extrema relevância na conformação psicológica de Nina, e que nos ajuda a compreender melhor suas atitudes aparentemente despropositadas e sórdidas. Apesar de não termos encontrado nenhum comentário de especialistas da obra cardosiana que abalize essa nossa teoria, que tentador seria imaginar Glael como nosso narrador implícito, que anos após findados todos os acontecimentos que abalaram a família Meneses, empreende uma investigação objetivando desvendar a verdade sobre sua origem.

Com essa revelação extemporânea de Ana, nos deparamos com a presença de um artifício literário que Aristóteles chamou em sua Poética, de "peripécia", ou seja, uma mudança de direção da ação em sentido contrário àquele que vinha sendo seguido. Em Crônica da casa assassinada, a história não chega a tomar o sentido contrário após a revelação de Ana, mas muitas das conclusões e significações deduzidas pelo leitor durante a leitura têm, a partir deste ponto, de ser revistas e reavaliadas.

Essa abrupta mudança de direção na linha dos acontecimentos, ou seria melhor dizer, esse fato revelado que modifica radicalmente a estrutura temática do romance, chega a retirar da obra sua verossimilhança, ou seja, sua lógica interna? Ou simplesmente estamos diante de mais alguns elementos caracterizadores da estética expressionista: a ignorância da lógica e da plausibilidade através de uma transcendência do real?

Para Wilson Martins, a revelação de Ana desmistifica a personagem Nina. Até as páginas finais do romance, sua figura assumia para o leitor uma aura de transcendência, um ser acima das convenções, uma transgressora dos valores morais e burgueses de uma sociedade conservadora e decadente:

"Nina, que existia numa esfera diferente da humanidade comum, que era até então uma rainha de tragédia, afrontando e enfrentando, na sua inocência pessoal, a maldição injustificada dos deuses, transforma-se de repente numa mulher comum, entregue às ‘loucuras da carne', como dizem os moralistas, mas já sem a grandeza, sem a majestade do sofrimento e da paixão, que a caracterizava."11


A argumentação de Martins é que Nina, até a revelação de Ana, era para nós, leitores ávidos de ídolos transgressores, um mito que se mostrava totalmente alheio aos padrões morais e éticos da sociedade moderna, mas cuja única transgressão, segundo a "revelação final" de Ana, foi a infidelidade conjugal. Wilson Martins chama a revelação de Ana de um "recuo final" no romance, e conclui dizendo:

"O leitor tem o recurso de acreditar no romance e não no romancista, de defender Nina contra o seu criador e de pensar que Ana morreu proferindo a suprema mentira: só assim poderemos restituir a Nina sua real realidade, torná-la digna dela mesma."12


A estrutura fragmentada do romance, apoiada em "refletores de consciência", e a ausência de um narrador onisciente, nos permitem aceitar a sugestão de Wilson Martins como uma das várias possibilidades de interpretação. Mediante a já citada incapacidade de apreensão de um sentido absoluto, o leitor fica na dependência das revelações e dos pontos de vista das personagens. A "verdade" jamais nos é revelada por inteiro (o que nos faz lembrar de um poema de Drummond, intitulado “Verdade”, no qual a porta que dá acesso ao mundo das verdades, só da passagem a meia verdade por vez. Quando a porta é destruída e se penetra no mundo das verdades, descobre-se que lá só existem meias verdades, e que as metades não se completam),13 abrindo a possibilidade para várias interpretações, e até mesmo, porque não, duvidar da palavra das personagens.

Quem nos garante que Ana não se enganou ao concluir que Nina sabia que André não era seu filho?: "Padre, esta é a desconfiança (grifo nosso) que trago comigo: Nina devia saber que André não era seu filho" (CCA, p. 576). Ou, como sugere Martins, simplesmente ter mentido para padre Justino, por senilidade ou despeito, talvez?

A estrutura inapreensível do romance nos permite divagações, dado o seu caráter inconclusivo. A obra deixa algumas perguntas sem respostas, ou melhor dizendo, deixa essas respostas por conta do leitor: quem é Glael? Nina sabia que não era mãe de André? Nina incitou Alberto ao suicídio? Nina amava Alberto? André é filho de Alberto? Algumas dessas perguntas, o leitor deste texto, que conheça profundamente a obra de Lúcio Cardoso, pode achar desnecessárias, pode considerar óbvias as resposta: “mas é claro que Nina amava Alberto! É evidente que Glael é o filho rejeitado!” Mas reiteramos que essas afirmações são frutos de interpretações subjetivas, que não encontram no romance um respaldo plenamente confiável, pois a ausência de um narrador onisciente e a estrutura fragmentada do romance obrigam o leitor a confrontar as versões das personagens e a construir suas próprias conclusões interpretativas. E nada impede que um romancista crie uma ou várias personagens mentirosas, ignorando assim a lógica e a plausibilidade, transcendendo a realidade, sendo assim profundamente expressionista.

Segundo Novaes Coelho, Lúcio pretendia mostrar que o mal é a grande força do homem. No romance, Nina representa o "anjo da destruição”. Então, porque redimi-la, humanizá-la nas últimas páginas? Porque este retrocesso?: "Pena foi que o final tivesse tentado desfazer o que a trama no romance havia feito, empobrecendo a grandeza ali existente."14

Contudo, podemos analisar a revelação de Ana por outro prisma: o grande pecado de Nina, pecado talvez maior do que o incesto, não seria o fato de ela permitir que André se atormentasse, imaginando estar vivendo em pecado ao dormir com a própria mãe?:

"Padre, e durante este tempo todo ela deixou André enganado, pensando que cometia o mais horrível dos pecados. (...) Padre, entre todos não é este o pior, o mais nefando dos crimes? Esse menino, não o terá ela levado ao desespero, pelo remorso de uma falta que realmente não cometeu?” (CCA, p. 576).


Esse é, ao nosso ver, o grande pecado de Nina, aquilo que justifica sua alcunha de anjo destruidor: permitir que André passe o resto de sua vida em tormento, em danação, se julgando um pecador, um homem sem Deus.

Há na estética expressionista uma valorização do "modo negativo" objetivando atingir o "modo positivo": uma busca de Deus através do pecado (influência da literatura dostoievskiana) e uma exploração do mal como elemento catártico, libertador e expiador. Em Crônica da casa assassinada, o atento leitor pode perceber a presença desta atmosfera maléfica e demoníaca como pano de fundo para um grotesco desfile de vários elementos e procedimentos expressionistas, o que levou Mario Carelli a escrever sobre Lúcio e sua principal obra:

"A sua ambição foi a de criar uma obra na qual a conjunção da violência do enredo com a prosa febril acordem e perturbem o leitor. Raramente na literatura brasileira a estética presidindo a uma obra ficcional foi tão visivelmente modelada por uma visão interior subvertendo a percepção convencional da realidade. (grifo nosso)."15


Este pertinente e arguto comentário tecido por Mario Carelli sobre o principal romance de Lúcio Cardoso, se confunde com a própria definição do Expressionismo como estética artística. Para Paulo Chiarini:

"Expressionista é a obra na qual o autor desordenou as linhas e estruturas naturais, acadêmicas, da composição, para obter efeitos de uma a emotividade carregada, exasperada, subtraindo a perspectiva de suas leis objetivas, dobrando-a ao ritmo interno da própria visão (grifo nosso)."16

Estas suas palavras confirmam as de Carelli e reiteram a inserção de Crônica da casa assassinada dentro dos padrões estéticos pré-estabelecidos pelo Expressionismo.








BIBLIOGRAFIA



ADONIAS FILHO. Crônica da casa assassinada. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. Madri, 1997.


AYALA, Walmir. Crônica da casa assassinada – a véspera do livro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1958. Suplemento Dominical.

BESAÇON, Guy. Notas clínicas e psicopatológicas. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. Madrid. 1997.


BOSI, Alfredo. Um grande folhetim tumultuosamente filosófico. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. Madrid, 1997.


CARDOSO, Lúcio. Crônica da Casa Assassinada. Ed. Crítica. Coordenada por Mario Carelli. Madrid, 1997. (col. Archivos, 18).

CARELLI, Mário. Corcel de fogo: Vida e obra de Lúcio Cardoso (1912-1968). Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.


———. A música do sangue. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. Madrid, 1997.

CHIARINI, Paulo. L’expressionismo: Storia e strutura. Roma: 1968.

COELHO, Nelly Novaes. Lúcio Cardoso e a inquietude existencial. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. Madrid, 1997.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. Debate sobre o expressionismo. São Paulo: Unesp, 1996.

MARTINS, Wilson. Um romance brasileiro, In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. Madrid, 1997.



1 CARELLI, M., 1997. p. 728. 2 MACHADO, C.E.J., 1996. p. 66. 3 BENJAMIN, W. Apud MACHADO, C.E.J., 1996. p. 99. 4 MARTINS, W., 1997. p. 797 5 CARDOSO, L., 1997. p. 764. 6 CARDOSO, L. Apud AYALA, W., 1958. p. 01. 7COMPAGNON, A., 1999. p. 29. 8 ADONIAS FILHO, 1997. p. 770. 9 BESANÇON, G., 1997. p. 693. 9 BOSI, A., 1997. p. XXII. 10 CARDOSO, L., 1997. p. 764. *Fernando Monteiro de Barros júnior, em sua dissertação de mestrado defendida na faculdade de letras da UFRJ, em 1994, intitulada: Aristocracia e monstruosidade: Nostalgia da aura na crônica da casa assassinada, defende uma teoria no mínimo curiosa. Segundo seu entendimento: "O texto de Lúcio Cardoso evidencia a nostalgia do autor por um Brasil aristocrático" (p. 112). E conclui dizendo que: "Não é o mal que corrói a chácara dos Meneses, nem o substrato patriarcal a causa da sua decadência. O aburguesamento é que assassinou a casa. (p. 112). 11 MARTINS, W., 1997. p. 796. 12 Ibidem, p. 796. 13 ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 41-42. 14 COELHO, N.N., 1997. p. 782. 15 CARELLI, M., 1997. p. 728. 16 CHIARINI, P., 1968. p. 45.

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