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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Atualizado: 14 de out. de 2020



ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA


José Saramago




UMA ALEGORIA DO HOMEM E DE SUAS SOCIEDADES CIVILIZADAS



“Estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.”



Em seu romance explicitamente alegórico - onde as alegorias são várias e se entrelaçam no decorrer da narrativa: civilização moderna, guerra, relações humanas, sociedade contemporânea, dentre outras -, Saramago nos mostra como a privação de um sentido, talvez o mais importante de todos, faz aflorar o que o homem tem de pior - prioritária e quantitativamente - e de melhor dentro de si: o ódio, o egoísmo, a ganância, a traição, o altruísmo, a solidariedade…. Uma espécie de pandemia começa a tomar conta rápida e gradativamente de toda a população de uma cidade. A cegueira branca. As pessoas são privadas da visão, de forma repentina e inexplicável. Sua cegueira, ao contrário do que nós que enxergamos imaginamos, é branca, e não negra. No princípio um grupo relativamente pequeno de pessoas, algumas poucas centenas, são acometidas pela “doença” e confinadas em um manicômio, reservado exclusivamente para os cegos (para os cegos antigos e para aqueles que ficaram cegos pela misteriosa pandemia. É interessante observar como dentro da sociedade criada no manicômio, onde os cegos são deixados à sua própria sorte, aqueles que são cegos a mais tempo, anos, décadas, dominam o ambiente e exercem poder sobre os “novos cegos”); porém, depois de alguns dias, toda a cidade é acometida pelo mal branco, e os personagens que o narrador acompanha abandonam o manicômio e se perdem pela cidade, em um périplo em busca de água, comida, parentes perdidos e algo que eles mesmo não sabem o que é, pois perderam seus principais referenciais de civilidade


Em uma sociedade (primeiro uma micro-sociedade: o manicômio, e depois toda uma cidade) na qual ninguém enxerga, o homem é reduzido às suas necessidades básicas de sobrevivência: alimentação, dejeção, consumo de líquidos e satisfação dos desejos sexuais (este último ainda não com o objetivo instintivo de reprodução e manutenção da raça, mas com o simples intuito de satisfação de uma necessidade tão premente no homem quanto a de se alimentar). Com alguns poucos dias abandonados à sua sorte, os personagens se veem reduzidos à sua condição primária de animal. Devido a necessidade de se alimentar e pela carência desse alimento, toda a energia dos personagens é canalizada para esse fim, que nada mais é do que se manter vivo. Nada mais importa: bens (foram privados de suas casas, carros, dinheiro), amores (muitos estão separados de seus pais , filhos, maridos, esposas), desenvolvimento intelectual, instrução (médicos, prostitutas milionários e pobres se reduzem ao mesmo múltiplo comum), felicidade, prazeres (com exceção do sexual, que se torna um ato quase que animalesco, primal, completamente desprovido de sentimento, reduzido a satisfazer uma necessidade do corpo), e tudo o mais que o ser humano civilizado foi acumulando durante séculos para ocupar seu tempo livre das premências de sobrevivência; já que em uma sociedade civilizada e moderna o homem não precisa despender seu tempo em caçar seu alimento, buscar água, reconstruir suas casas, plantar seu próprio alimento (infelizmente isso não se aplica a todos em nossas evoluídas sociedades capitalistas) e se proteger dos inimigos, seja animais ou outros homens.

José Saramago

Naturalmente - dentro do manicômio, e principalmente fora, quando já toda a população da cidade se encontra cega - as pessoas começam a se organizar em pequenos bandos funcionais, como os humanos fizeram há milhares de anos atrás, unindo as forças em bem do grupo. Em pouco tempo descobriram que sozinhos eram mais frágeis, e em grandes grupos contraproducentes: “De vez em quando paravam, farejavam à entrada das lojas, a sentir se vinha cheiro de comida, qualquer que fosse, depois prosseguiam o seu caminho, viravam uma esquina, desapareciam de vista, daí a pouco surgia dali outro grupo...”


Não há mais função para a produção cultural: não há eletricidade, os livros tornaram-se alimento para as fogueiras, não há mais música no ar (um ou outro músico talvez tivesse mantido seu instrumento, e com o tempo, sem dúvida, a música ressurgiria, mas não naquele primeiro momento), cinemas e museus transformaram-se em alojamentos para os grupos itinerantes em busca de alimentos: “Andam por aí, não sabem o que hão de fazer, vagueiam pelas ruas, mas nunca por muito tempo, andar ou estar parado dá no mesmo para eles, tirando procurar comida não têm outros objetivos, a música acabou, nunca houve tanto silêncio no mundo.”


Todos perdem a visão, menos uma personagem: a mulher do médico. Saramago não dá nomes aos personagens, apenas os identifica como: a rapariga de óculos escuros, o primeiro cego, a mulher do primeiro cego, e assim por diante, até o cão que passa a seguir o grupo que o leitor acompanha recebe o nome de cão das lágrimas. A mulher do médico cumpre duas importantes funções como personagem (isso sem falar de sua atribuição como orientadora do grupo, tornando-se um diferencial em relação aos outros grupos formados só de cegos): primeiro ela é o ponto de orientação do próprio narrador. Os nossos referenciais, os referenciais da própria literatura, levam em conta, em alta conta inclusive, a visão. A trama envolve situações onde a localização do leitor em termos de espaço, profundidade, quantidade, é fundamental para a narrativa. Sendo assim a mulher do médico não é apenas os olhos de seus amigos, mas muitas vezes os olhos do próprio narrador. Um narrador onisciente, que não foi afetado pelo surto da cegueira, mas que precisa da mulher do médico como sua interlocutora direta com o universo branco que tomou conta de toda a população:


“Tenho de abrir os olhos, pensou a mulher do médico. Através das pálpebras fechadas, quando por várias vezes acordou durante a noite, percebera a mortiça claridade das lâmpadas que mal iluminavam a camarata, mas agora parecia-lhe notar uma diferença, uma outra presença luminosa, poderia ser o efeito do primeiro lusco-fusco da madrugada, poderia ser já o mar de leite a afogar-lhe os olhos”


A outra função da mulher do médico, é que a ela é dado o direito de ver aquilo que para muitos seria preferível a cegueira do que ser obrigado a testemunhar com seus próprios olhos: o homem e a nossa moderna sociedade ser reduzida à barbárie. As pessoas defecam no meio da rua, dormem junto ao lixo, sujas de excrementos, brigam e se agridem por um pedaço de carne podre. E ainda continuam vivos, não se matam, se adaptam: “...que uma pessoa se habitua a tudo, sobretudo se deixou de ser pessoa.”


O romance de Saramago é devedor, consciente ou não, de duas conhecidas obras da literatura: Eu sou a lenda, de Richard Matheson, na qual um único homem tenta sobreviver em um mundo onde todas as pessoas se tornaram mortos-vivos. Ele é a exceção, como a mulher do médico; a outra obra é A peste, de Albert Camus. Aqui uma epidemia vai gradativamente tomando conta da cidade e fazendo dos personagens suas vítimas, uma por uma. Nesta novela de Camus, o modus vivendi de inter-relações entre as pessoas também se modifica perante um perigo maior. Também poderíamos citar aqui o conto Em terra de cego (The Country of the blind), de H. G. Wells, onde um homem descobre uma aldeia isolada em que todos os habitantes são cegos, sendo assim ele pretende tornar-se o rei deles, fazendo valer o ditado: "em terra de cego quem tem um olho é rei"; mas o que o homem não esperava é que para os cegos ele era um inválido, um homem que se mostrou inadaptado e mais fraco que eles (como Saramago nos mostra dentro do manicômio a superioridade dos cegos mais antigos, aqueles que já eram cegos antes da epidemia e por isso tinham os outros sentidos muito mais aguçados que os novos cegos) Para Ítalo Calvino: "Em terra de cego é um grande apólogo moral e político ... uma meditação sobre a diversidade cultural e sobre o caráter relativo de qualquer pretensão à superioridade."

Em A peste, Camus cria uma alegoria do nazismo. Saramago, por sua vez, cria uma alegoria do homem e dos valores criados por este para sustentar uma sociedade autointitulada moderna e civilizada. Quase ao final da narrativa, a mulher do médico diz que o mundo agora representa em seu exterior, aquilo que ele sempre foi em seu interior. E na página final, o médico diz, após ter recuperado a visão: “Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.”


A leitura de Ensaio sobre a cegueira nos incomoda por que nos faz ver o que somos em nossa essência, e a mentira que criamos à nossa volta, como um autoengano. Saramago nos mostra que nossa sociedade está erigida sobre valores que não se sustentam em uma situação extrema. Sobre valores que não impedem que, submetidos a uma catástrofe onde todos são atingidos, haja uma grande possibilidade de regredirmos séculos e séculos em nosso longo e frágil processo evolutivo.


José Saramago


(A edição usada como base para este texto foi a 42° reimpressão lançada pela Companhia das letras em 2008. O livro ainda se encontra em catalogo e é facilmente encontrado nas principais livrarias. Há um bom filme dirigido por Fernando Meirelles e lançado em 2008, com um elenco estrelado mas que em muitos trechos consegue passar muito de toda angustiante atmosfera do livro de Saramago. José Saramago assistiu ao filme junto com o diretor na abertura do festival de Cannes. Quando as luzes acenderam ele disse: "Fernando, estou tão feliz por ter visto esse filme... feliz como estava quando acabei de escrever o livro". Que deixemos claro aqui, que por melhor que seja o filme, de forma alguma substitui a leitura do livro, que além de ser mais completo nos episódios narrados, nos brinda com o primoroso estilo de escrita do autor português.)

Cena do filme: "Ensaio sobre a cegueira" (Blindness), de Fernando Meirelles


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