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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

GÓTICO MEXICANO







GÓTICO MEXICANO


Silvia Moreno-Garcia




O romance da escritora mexicana, Silvia Moreno-Garcia, mais do que uma obra escrita com os elementos e as características da literatura gótica, é antes de mais nada uma homenagem a este estilo que teve extrema relevância na literatura europeia durante algumas décadas. Apesar de grande parte da crítica apontar o surgimento do estilo com a publicação do romance, O castelo de Otranto, do escritor inglês Horace Walpole, na segunda metade do século XVIII, é no século XIX, quando a literatura gótica e o movimento romântico se imbricam e se alimentam mutuamente, que surgem as grandes obras desta literatura sui-generis, a saber, o gótico-romântico (é necessário abrir um parênteses aqui para explicar que o movimento gótico na literatura nada tem haver com a arquitetura gótica e a arte gótica de uma forma geral, surgida no século XII, a não ser uma referência indireta ao obscurantismo, que posteriormente os renascentistas atribuíram à precedente estética gótica. O nome inclusive faz referência ao Godos, povo tido como bárbaro e que invadiu Roma no século V). Podemos citar como exemplos o romance de Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes; o grande clássico do terror, Frankenstein, de Mary Shelley; a obra poética de Lord Byron; os contos de Edgar Allan Poe, além, claro, de seu icônico poema, O corvo. O Brasil também conta com alguns representantes do gênero, sendo o mais conhecido deles o Álvares de Azevedo de Macário e Noite na Taverna.


Em todas essas obras percebemos a presença dos principais elementos da literatura gótico-romântica: a atmosfera lúgubre, trevosa, sombria, personagens estranhos, fantásticos, a presença de figuras recorrentes como a neblina, cemitérios, corredores escuros, passagens secretas, sons estranhos, a noite, fantasmas, etc…. É muito difícil, em pleno século XX, onde castelos e mansões sombrias não são mais tão comuns como habitações, escrever um romance gótico sem fazer largo uso dos clichês que caracterizam o estilo. Contudo, como já dissemos no início deste texto, nunca foi a intenção da autora mexicana tentar fugir ou mascarar esses clichês, já que o seu livro é uma homenagem a esta literatura sombria. Em várias passagens a autora, inclusive, cita obras e autores da literatura gótico-romântica, com o claro objetivo de estabelecer um diálogo que legitime seu romance e que exalte os seus modelos:


“A neblina conferia uma aura romântica ao cemitério. Lembrou-se de que Mary Shelley teve encontros furtivos com seu futuro marido em um cemitério; amor clandestino à sombra dos túmulos. Catalina lhe contara essa história, com o mesmo entusiasmo com que falava de O Morro dos Ventos Uivantes."


Silvia Moreno-Garcia usa, sem abusar, de praticamente todo o arsenal de lugares comuns da literatura gótica, e não nega isso, pois o romance faz referência ao gótico até no título. Através de uma narrativa equilibrada, em que o clima de tensão vai aumentando gradativamente e prendendo o leitor, que é a cada página impulsionado para a seguinte. As sensações de medo, suspense, raiva, estranhamento, estão presentes na obra, pois é isso que o leitor espera de um livro que se auto-intitula Gótico Mexicano. E neste quesito a obra não decepciona, pois apesar de ser escrito como se a autora tivesse um manual gótico debaixo do braço, o livro cumpre seu objetivo com competência. A falta de ritmo inicial é compensada pela solução coerente (se comparado às clássicas obras góticas do século XIX, onde monstros eram criados com pedaços de pessoas mortas e vampiros sugavam os sangues de suas vítimas) encontrada pela autora para os acontecimentos bizarros que se passam na casa. Acontecimentos estes que, em última instância, se optarmos pela incredulidade, podemos creditar a uma espécie de alucinação coletiva dos habitantes de uma casa tomada por cogumelos alucinógenos:


“Ela olhou por cima do ombro antes de virar no corredor. Ele pareceu meio fantasmagórico, ainda parado na soleira, com o brilho das lamparinas e das velas no quarto iluminando o cabelo loiro como uma chama sobrenatural. Em algumas cidadezinhas poeirentas do país, diziam que bruxas podiam se transformar em bolas de fogo e voar. Era como eles explicavam o fogo-fátuo. Noemí refletiu sobre aquilo, e sua mente trouxe a memória do sonho que tivera com a mulher dourada.”


Alucinação e realidade se confundem. A casa usa os sonhos e o inconsciente para dominar aqueles que nela habitam, tornando-se assim, a personagem central do romance. A casa paira sobre os personagens que residem ali ou que a visitam, ao mesmo tempo que os oprime entre suas paredes, onde o bolor pulsa de forma viva, criando aquele éter, aquele nevoeiro espiritual - a caligem -, mais sentido do que visto, e que envolve a todos em uma aura demoníaca de alucinação:


“Noemi se levantou, devagar e sem piscar e se aproximou da parede. O mofo que se mexia era hipnotizante. Ele se realinhava em estampas ecléticas como em um caleidoscópio, deslocando-se, transformando-se. Em vez de cacos de vidros refletidos por espelhos, era uma loucura orgânica que impelia o mofo a fazer curvas e voltas vertiginosas, criando espirais e guirlandas, dissolvendo-se, então se fundindo novamente.”




É a casa que em uma relação simbólica fortalece e é fortalecida pela família. High Place não é apenas uma personagem do livro, mas seu ponto central, o epicentro do qual irradia toda a narrativa, o ser inanimado que ganha vida devido à interação orgânica com os cogumelos que brotam de suas entranhas e tomam suas paredes. Não foi a primeira, e com certeza não será a última vez que uma casa assume o protagonismo em uma obra literária. Só para elencar alguns exemplos, temos - citado algumas vezes no romance de Garcia-Moreno - O Morro dos Ventos Uivantes, com sua atmosfera de mistério e alucinação: “Wuthering Heights (O morro dos ventos uivantes) é o nome da casa do Sr Heathcliff, é um significativo provincianismo que descreve o tumulto atmosférico a que está ela sujeita na época tempestuosa (...) Mas o Sr Heathcliff forma um contraste singular com sua residência e o seu modo de vida.” (trecho de O Morro dos ventos Uivantes). Uma outra obra representante da literatura gótica, no qual a casa exerce uma presença dominante, é o romance A casa das Sete Torres, de Nathaniel Hawthorne, um livro de atmosfera angustiante e fantástica. Na literatura brasileira o exemplo mais emblemático é sem dúvida o romance publicado por Lúcio Cardoso em 1959: Crônica da Casa Assassinada, como podemos notar neste trecho, onde a casa é humanizada pelo autor, ou deveríamos dizer, demonizada:


“ (...) ruía a casa dos Meneses (...) Dirão que isso talvez não passasse de impressão exagerada, mas a verdade é que de há muito que eu pressentia um mal qualquer devorando os alicerces da chácara. Aquele reduto, que desde a minha infância eu aprendera a respeitar e admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos, frágil ante a destruição próxima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos próprios venenos que traz no sangue.” (trecho de Crônica da Casa Assassinada)


Não é difícil notarmos, porém em menor grau, essa forte influência que a casa tem em nossas vidas. A disposição dos cômodos, seu posicionamento em relação ao sol, sua localização geográfica, além de vários outros fatores intrínsecos e extrínsecos à construção, determinam de forma substancial nossos comportamentos, hábitos, horários, etc. A casa interage com seus habitantes, em uma relação de troca constante, onde uma se molda em relação ao outro e vice-versa. A casa quase sempre reflete a identidade de seus moradores, na sua decoração, estrutura e localização, mas o que nem sempre percebemos é que nós também refletimos a identidade da casa, nessa relação simbiótica.


O livro de Silvia Moreno-Garcia é todo ele narrado pela ótica de Noemí, não há nenhuma cena narrada que ela não esteja presente, limitando assim um pouco a dinâmica da narrativa, mas por outro lado criando uma identificação necessária do leitor com a personagem, fazendo, dessa forma, com que compartilhemos suas angústias e seus medos de maneira mais intensa. Um artifício literário muito usado neste tipo de obra.


Uma, podemos dizer, curiosidade da narrativa deste romance, é que apesar de ter sido escrito em espanhol, os personagens falam em inglês (apesar de só sabermos disso por que o narrador nos avisa anteriormente): “E já lhe adianto, não falamos espanhol em High Place. Meu tio-avô não sabe falar uma palavra sequer do idioma. Virgil possui um conhecimento limitadíssimo e minha mãe jamais se atreveria a falar uma frase inteira. A senhorita ,,, fala inglês bem?” Isso deve tornar o texto original um tanto exótico, pois é um livro escrito em espanhol, que se passa no México, com personagens, quase todos eles, mexicanos, mas que falam em Inglês, apesar de estarmos lendo os diálogos em espanhol, como se o narrador tivesse traduzindo para nós, leitores.


Para finalizarmos essa breve análise do romance Gótico Mexicano, devemos elogiar a belíssima edição da Darkside, que com certeza chamará a atenção, para prateleiras das livrarias, de muitos futuros leitores - mas não se esqueçam jamais da máxima que nunca devemos julgar um livro pela capa. Infelizmente o livro peca por um número excessivo de pequenos erros de grafia, que não chegam a prejudicar a leitura, mas contrastam negativamente com a bela edição e com a honesta e correta tradução de Marcia Heloisa e Nilsen Silva.


E por fim, deixamos aqui o registro de que a mensagem do livro merece ser absorvida, através do mantra que perpassa toda a obra: “Abra os olhos.” Quase sempre é a melhor coisa a fazer para enfrentarmos os monstros que habitam nosso inconsciente e aqueles que habitam nossa vida real.



(O presente texto usou como base a primeira edição do romance Gótico Mexicano publicado pela Darside, em 2021. O livro pode ser encontrado com facilidade em qualquer livraria, física ou virtual)

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