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Leão-de-chácara


Leão-de-chácara


João Antônio





Roseanismo urbano




Leão-de-chácara é o segundo livro de João Antônio, lançado doze longos anos após o seu consagrado livro de estreia, Malagueta, Perus e Bacanaço. João Antônio, para aqueles que infortunadamente ainda não o conhecem, foi um premiado escritor brasileiro de contos e que publicou grande parte de sua obra nas décadas de 60, 70 e 80, mas que em paralelo à sua atividade de escritor, que ele conscientemente buscava despojar de todo o glamour e mistificação, também exerceu, com grande competência, e inclusive como principal função - pois era daí que vinha os recursos para pagar suas contas -, a atividade de jornalista, trabalhando em alguns dos principais jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Sobre o trabalho do autor como operário da palavra e a fuga constante da mistificação da figura do escritor, João Antônio escreve:


“Pronto o livro, o autor brasileiro não deve fugir à realidade de que é um vendedor de cebolas ou batatas. Mas com uma diferença, é claro: no Brasil o livro não é considerado como produto de primeira necessidade, como os cereais. Também por isso, há de sair a campo e de se divulgar o que se sabe fazer. Efetivamente é mais que um camelô de sua área: conversa sobre a obra, mas o ideal é que ouça muito o seu parceiro, o leitor. Que jamais se estabeleça um clima formal, doutoral, beletrístico, mas de debate, discussão, questionamento, amizade.

Se o escritor se enclausura numa torre, se atende apenas à onda geral da feira de vaidades que é chamada vida literária, jamais poderá sentir a realidade de seu público.”




É imprudente e irresponsável, e eu diria mais, até impossível, para uma análise minimamente coerente e embasada de sua escrita, separar sua obra literária de sua função de jornalista, e até mesmo do seu jeito simples e popular de ser: “Eu sou homem de entrar em butiquim, salão de sinuca, essas coisas. A boate não faz o meu gênero, acho tudo falso na boate, a começar do uísque, que é uma mistura de chá com iodo, qualquer besteira dessa.” O universo retratado por João Antônio é aquele da boca do lixo: malandros, prostitutas, viradores, engraxates, travestis, invertidos, jogadores de sinuca, batedores de carteira, leões-de-chácara, toda uma gama de excluídos da nossa sociedade, de pessoas que vivem na tábua da beirada, equilibristas da corda bamba, que batalham a refeição diária e a sobrevivência do dia a dia. E para isso vale tudo: vender o corpo, roubar nas cartas, apostar os míseros tostões na mesa de sinuca ou nas patas dos cavalos, explorar as mulheres ou, até mesmo, quando se tem um emprego fixo, como um leão-de-chácara por exemplo, se virar noite após noite para garantir o seu:


“A vida não costuma fazer graça pra ninguém. É como a féria que eu cato no fim da noite; ela chega porque me viro. Botem fé, nada cai do céu ou nasce por acaso. O que cai do céu é chuva e esta vida cachorra é uma dissimulada dos capetas, em que cada um está na sua, bem plantado e disfarçado. E, lá por dentro, uns querendo que os outros se ralem. O esperto mais acordado, o trouxa muito cavalo e o beldroegas. No fundo-fundo mesmo, empatam: cada um corre atrás do seu pedaço, podendo um come o outro pela perna. O otário mete grana em mão de mulher por que ela o atura na cama e nas vontades. Vem o malandreco, o cafiolo, e apanha a nota da infeliz. Mas esse mordedor também perde a boca se não disciplinar, orientar, aturar a mina; é um preço. Aquilo que dá grana dá canseira.



Seus personagens moram, a maioria, na periferia, pegam muitas vezes dois ônibus e o trem suburbano para voltar para casa depois de um dia ou noite de trabalho ou viração. A boca do lixo, a zona boêmia, o centro da cidade, são lugares de trabalho, onde vão levantar a féria do dia, nos salões de sinuca, nos inferninhos, nos hotéis pagos por hora, ou mesmo nas calçadas, “enganando os trouxas.” Vida de tubarão: quem para de dar braçada, quem parar de nadar vai pro fundo. É um dia após o outro, uma luta pela sobrevivência diária, onde os conceitos morais e éticos que conhecemos são transmutados e adaptados a uma outra realidade. Não é o caso da falta de existência de códigos morais - “malandro não entrega malandro!” -, mas sim uma redefinição para uma realidade em que a lei da selva é preponderante, onde cobiçar o alheio - como diz Paulinho duma Perna Torta, personagem narrador do último conto do livro - é a lei do malandro, onde enganar um trouxa, um coió, é quase uma obrigação ética das prostitutas e dos viradores que frequentam as zonas boêmias. Contudo, percebemos em todos os personagens, habitantes deste mundo, submundo (com exceção de “Três cunhadas”, onde vemos o único personagem “merduncho”, aquele trabalhador de sol a sol, endividado com a prestação da geladeira, que pega a barca de Niterói para ir e voltar diariamente de seu empreguinho medíocre, que lhe paga um salário miserável, que lhe permite apenas tocar sua vida igualmente medíocre e miserável), uma bondade latente, um caráter sólido e uma solidariedade irmã aos amigos, aos seus iguais; o que não os impede, se caso for necessário, apagar com meia dúzia de tiros ou uma navalhada na garganta algum malandro mais espaçoso.


Os três primeiros contos do livro se passam no Rio de Janeiro; o primeiro e o segundo em regiões como a lapa, por exemplo, reduto boêmio histórico da cidade. Já o quarto conto, escrito anos antes e incluído na edição, se passa na boca do lixo, região boêmia e marginal do centro de São Paulo, onde hoje, dias menos românticos,

instala-se a cracolândia, ferida aberta e um reflexo cruel da nossa atual sociedade, em que o malandro esperto e muitas vezes inofensivo deu lugar ao crime organizado e às drogas, que nem mesmo respeitam um dos princípios básicos do capitalista, que é do manter o consumidor vivo. Essa mudança de cenário dos contos acompanha a errância do próprio autor, que entre seus dois primeiros livros mudou-se para o Rio a trabalho e por lá ficou.



Em dois dos contos, "Leão-de-Chácara" e “Joãozinho da Babilônia”, ambos narrados na primeira pessoa (dos quatro contos, o único narrado na terceira pessoa é “Três cunhadas”, e há uma razão formal para isso: devido ao fato do personagem ser um “merduncho”, um trabalhador tradicional, e não um frequentador do meio boêmio, do submundo da malandragem, seu linguajar difere dos personagens narradores dos outros três contos. E também a estrutura sintática se modifica, espelhando o perfil tradicionalista do personagem.), o narrador é um leão-de-chácara. Fica bastante claro para o leitor, que toma conhecimento da formação jornalística do autor, o profundo trabalho de pesquisa e imersão no mundo/submundo desta figura emblemática do universo boêmio. João Antônio nos descortina todo o universo que cerca a profissão, desde uma espécie de máfia/sindicato informal - que domina os postos nas boates da zona boêmia -, até os códigos de honra da categoria, passando por suas vidas familiares, suas malandragens para tirar dinheiro dos trouxas e de quem mais puderem, até uma solidariedade fraternal por um irmão de profissão que se encontra em um momento difícil:


“O baralho todo está na nossa mãozinha. Nenhum porteiro de toda a patota ganha mais de seiscentos cruzeiros por mês. E daí? Isso não está dizendo nada. Um leão ajuizado, cabeça no lugar, maneiro, jeitoso, arranca a erva de todos; do gerente da casa, dos fregueses e de tudo quanto for mocorongo que aparecer dando sopa. É verdade que precisa ser devagar, mas que a grana sai, sai. falei.

(...) Miçanga, o leão de uma das boates do cais, era faixa meu e andou mal na profissão. Fez bobagem lá em Santos e correram com ele. Na matina, bateu-me aqui, querendo emprego e vinte pratas para matar a fome. Andava caladão e magriço. Espetei a barriga do malandro com o dedo.

- Guenta aí meu compadre, que a gente vai comer uma galinha mais logo, rabo da manhã, lá no Beco da Fome, no muquifo da das Dores.

No outro dia me mandei mais cedo de casa lá de Inhaúma. Ia cavar uma viração pro Miçanga, que o cara estava na pior, mas era bom de luta e nunca foi de engessar companheiro. Bati perna, falei, boquejei, pedi, arranjei um gancho pra ele lá na Mauá. Nem pedi nada em troca:

- Olhe aí parceirinho, juizo agora, hein ô?”


Em uma entrevista concedida no ano do lançamento do livro, 1975, para a revista Crítica, João Antônio fala um pouco sobre seu processo de pesquisa do universo que cercava a profissão de leão-de-chácara. Há de ficar bem claro, porém, que independente da de pesquisa realizada com os olhos e os cacoetes do jornalista, o próprio autor era um homem afeito ao submundo da malandragem. Bares de sinuca, a zona boêmia, os inferninhos, os butiquins copo sujo, nunca foram estranhos, muito pelo contrário, a João Antônio. A própria profissão do jornalista naquela época, em que as redações fechavam altas horas da noite, levavam seus profissionais aos lugares que rompiam a madrugada, para comer, conversar e beber. A boemia sempre esteve muito ligada ao mundo jornalístico no Brasil:


“Agora, para fazer Leão-de-Chácara eu analisei muito, conversei muito, principalmente com um garçom que já é morto - e sirva esse papo como uma homenagem a ele. Era o Garotinho. Garotinho era um velho garçom de 62 anos, que trabalhou sempre ali na Prado Júnior, depois foi pro Cantinho do Leme, trabalhava sempre à noite. (...) Então a humildade do garçom, do bom garçom, aprendi através da conversa e acompanhando muitas vezes o Garotinho depois do expediente dele ali no Cantinho do Leme, acompanhando ele pela noite, quatro, cinco horas da manhã. (...) Então foi conversando com ele, observando outros leões-de-chácara, vendo aquela figura aparentemente pitoresca, engraçada, que não tem nada disso, é um pingente urbano, é um massacrado - e é um inconsciente também. Então foi assim que eu comecei. A figura do leão começou a sair da aparência pra mim, começou a se aproximar da realidade, da essência.”


Jaguar, mítico jornalista, co-fundador do jornal O Pasquim e amigo de João Antônio, chamava a linguagem criada por este na maioria dos seus contos, de joãoantonês: “se você incauto leitor, achar que o linguajar do Leão-de-Chácara é o mesmo que se fala na Capela da Lapa, vai dançar. Nego vai te tirar de pinel se você, pra se enturmar, for pintando e dizendo: ’Mas eu estava no ambiente e não era grande vantagem aliviar o pororó dos loques.’”


Realmente o vocabulário, a sintaxe e a semântica utilizadas por João Antônio, são um caso à parte e merecedores das mais profundas análises e elogios por parte da nossa crítica especializada. Antonio Candido escreveu assim sobre o conto “Paulinho Perna Torta”: “Nele parece realizar-se de maneira privilegiada a aspiração a uma prosa aderente a todos os níveis de realidade, graças ao fluxo do monólogo, à gíria, à abolição das diferenças entre falado e escrito, ao ritmo galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a vida do crime e da prostituição.”


O texto de João Antônio, principalmente quando o autor cede a voz a seus personagens oriundos da boemia e do universo da malandragem, estruturando-o na primeira pessoa, para que assim eles possam contar suas histórias, é repleto de neologismos e construções frasísticas originais, além de uma sintaxe que perverte a ordem gramatical estabelecida sem agredi-la em sua essência. Isso não quer dizer que em outros textos do autor, narrados na terceira pessoa, não exista esta criatividade e inovação sintática e semântica; porém, quando o próprio malandro, como Paulinho duma Perna Torta, Joãozinho da Babilônia, ou o leão-de-chácara Pirraça, têm a voz, sentimos que a liberdade formal de João Antônio aumenta, podendo inserir em suas falas toda a sorte de gírias e neologismos da malandragem que melhor lhe aprouver, para assim dar ritmo e identidade ao texto, como neste trecho, logo no início do conto “Leão-de Chácara”:


“O que vai me baixar pela frente não está em nenhum caderno. O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé-grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado amador, loque, cavalo-de-reta, zé-mané dando bobeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado, quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil. Eu aturando, ô pedreira! Para mim a noite vai ser de murro.

Na noite malhada e escrota, disciplinando as mulheres, beliscando os otários, distribuindo mesuras e apanhando grojas, picardo e sonso; mas também molhando a mão dos ratos, que os arreglos são de lei, acabarei dando muitas de cerca-lourenço, muita piaba e bastante pau nessa cambada de fariseus, sambudos e mal-topados. Hoje é sexta-feira. E gajo solto nesta noite é falso boêmio, metido a alegre e sabidinho, achando que é algum manda-tudo na cidade. Mordo-lhes uma grana, é verdade, mas me dão canseira.”


Qualquer leitor experiente e minimamente conhecedor da literatura brasileira se vê tentado a ver em sua linguagem um roseanismo urbano. E não estará cometendo nenhuma injúria ao dizer ou pensar isto, pois vários críticos já fizeram essa aproximação, considerando o texto de João Antônio uma versão urbana - uma literatura que retrata e dá voz ao submundo das grandes cidades - do universo rural do homem do campo, simplório, mas jamais simplista, retratado por Guimarães Rosa.


O texto de João Antônio nos deleita com seu ritmo, com sua musicalidade, com trechos de intensa carga poética, como este, presente no conto “Joãozinho da Babilônia”.


“Eu me contenho diante do mar. Os seus olhos eram dois. Escuros, sonsos e onde o cais? Aperto o passo, ando esta Copacabana, me consolo. Seus olhos, dois mares.

Copacabana. Copa dorme, ronca como uma porca enfarada, entupida - escrota - de sacanagens e gentes.

Nem assobio, nem durmo, já devo ter parado de chorar. Andei da pedra do Leme ao banco da Praça do Lido. Acho que perdi e espero, morto, mortinho, o sol da manhã. Desacompanhado, como quem se preza. Sol, mar, os claros do céu. Tudo dói e redoi nos olhos que não dormiram.”


Leão-de-chácara é um livro, que como poucos na literatura brasileira, encontra um equilíbrio - não um equilíbrio estático, mas aquele que edifica, que ascende - entre a forma e o conteúdo. Onde percebemos que a primeira está a serviço do segundo, mas que não se restringe a coadjuvante, pelo contrário, exige espaço de destaque. O conteúdo das histórias se torna mais denso e mais verossímil pela forma que é narrado, pelas construções sintáticas e pelo vocabulário utilizado. Da mesma maneira a estrutura formal criada e aplicada quase que artesanalmente pelo autor, só encontra sua grandiosidade no conteúdo das histórias que narra e nas almas expostas, como fratura, dessas personagens que compõem uma rica fauna de seres tristes, angustiados, desesperados, amargurados, mas nunca derrotados. A literatura de João Antônio não nos deprime e nem nos faz perder a esperança no homem, pelo contrário.



(Utilizamos para a realização deste ensaio a edição da Cosac & Naify, de 2002. Leão de chácara possui várias edições. A mais recente é da Editora 34,)


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