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O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS



O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS


Leonardo Padura


(Por sobre as ruínas de um sonho)




Segundo o escritor, bibliófilo e amante dos livros, Eduardo Frieiro, “O romancista inglês Somerset Maugham dividia os leitores em três grupos: os que leem para se instruir, os que na leitura buscam unicamente o prazer e, por último, os que antes preferem ler um catálogo de artigos comerciais do que uma boa obra de imaginação ou de poesia.” O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura, sem dúvida atende aos leitores dos dois primeiros grupos; mas sobremaneira aqueles do primeiro. O livro é extremamente instrutivo e informativo sobre um determinado fato histórico e um período específico de nossa história social; (os anos que vão da Revolução Russa de 1917 até a Segunda Guerra Mundial.), mas que deixou marcas e influenciou uma série de eventos econômicos e políticos ocorridos nas décadas seguintes. Fruto de quase 10 anos de exaustivas pesquisas e leituras, além do longo processo de escrita e reescrita, o romance de Padura acaba se tornando prazeroso por consequência, para aqueles leitores que imergem no universo (des)coberto pelo autor, mas de maneira alguma é uma leitura fluida e leve por natureza; mas quem disse que todo livro deve ser prazeroso e fluido em seu processo de leitura? E cabe aqui buscar uma definição do que consideramos uma leitura prazerosa: é aquela que se desenvolve com facilidade e nos cria belas imagens? É aquela que nos instiga? É aquela que nos instrui? Como disse anteriormente, a leitura de O homem que amava os cachorros não é fácil e palatável, não é um daqueles livros que lemos com as pernas para cima em uma cadeira de praia, com o volume em uma das mãos e um sorvete de baunilha na outra; mas se torna prazerosa com o desenvolver de sua trama, através do seu rico conteúdo histórico e de seus eventos tão bem descritos por Padura, nos levando em viagem para Cuba ,Espanha, México, França e Rússia.

O romance é estruturado sob três perspectivas: a de Mercader; a de Trótski; e a de Iván, um frustrado escritor cubano para quem o homem que amava os cachorros, durante encontros em uma praia deserta, em Santa Maria Del Mar, conta a história de Mercader (quem é este homem doente, marcado pelo tempo? Será o próprio Mercader, se indaga Iván). Uma vez de posse dessa história, e anos depois recebendo pelo correio, por um remetente desconhecido, um livro escrito pelo irmão de Ramon Mercader e que lhe complementava o que havia escutado da boca do homem que amava os cachorros, Iván vai atrás da outra ponta: a história de Trótski. O processo de pesquisa do personagem assemelha-se ao processo de pesquisa do próprio Leonardo Padura: “Além do lento e pesado exercício da escrita a que regressei depois de receber o livro de Luis Mercader - não fazia ideia de até que ponto podia ser difícil escrever a sério, com responsabilidade e consciência das consequências e, ainda por cima, tentando colocar-se na cabeça de outro indivíduo que existiu na nossa própria realidade e obrigando-se a pensar e a sentir como ele”. E mais a frente Iván escreve:


"A conversa com Daniel e os efeitos imediatos que gerou serviram para desempoeirar e rever o que eu escrevera até então. Senti como uma necessidade visceral daquela história a existência de outra voz, de outra perspectiva, capaz de complementar e de contrastar o que o homem que amava os cachorros me contara. E rapidamente descobri que minha intenção de compreender a vida de Ramon Mercader implicava tentar entender também a vida de sua vítima, porque aquele assassino só ficaria completo, como carrasco e como ser humano, se fosse acompanhado pelo objetivo do seu ato, pelo depositário de seu ódio e do ódio dos homens que o armaram e o induziram a isso.”


O romance de Leonardo Padura nos conta a história do assassinato de Leon Trótski. Para isso ele cria uma trama narrativa subdividida em três eixos perspectivos, objetivando assim contextualizar historicamente o assassinato e suas motivações políticas. Ele também nos possibilita, leitores, acompanhar os passos de ambos os personagens até o seu fatídico encontro na Cidade do México: a trajetória de Trótski, em sua peregrinação por diversos países em busca de asilo político, desde sua expulsão do partido comunista soviético em 1927, passando pelo Cazaquistão, Turquia, Noruega, França, até chegar ao México, sua última parada; e a de Ramon Mercader, desde sua efetiva participação na Guerra Civil Espanhola, passando pelo seu treinamento na Rússia, sua estada na França, enquanto aguardava o comando de seus superiores, até os meses passados na Cidade do México, que antecederam a histórica data de 20 de agosto de 1940.

Leon Trótski

A primeira parte do livro tem como principais objetivos (nos capítulos que tratam de Trótski e de Mercader): contextualizar o leitor em relação à realidade sócio-política da União Soviética, desde a revolução de 1917 até os anos que precedem a

Segunda Guerra Mundial, além de expor as estratégias políticas de Joseph Stalin em relação à União Soviética, à Europa, à Trótski e à toda oposição ao seu governo, dentro ou fora de seu país; e por outro lado nos mostrar os intricados jogos políticos e estratégicos da Guerra Civil Espanhola, onde Mercader era um diligente soldado e defensor dos republicanos. Padura faz questão de expor com detalhes, tanto os meandros da política interna russa, com Stalin eliminando, um por um, todos os grandes líderes da revolução de 1917 - a maioria inclusive seus aliados por muitos anos -, quanto a evolução da Guerra Civil Espanhola, onde a União Soviética exercia um controle intenso dos movimentos bélicos e estratégicos do exército republicano, pois não podemos esquecer que eram os soviéticos que financiavam e cediam armas para os republicanos (segundo uma das análises feitas por Padura, Stalin usou a Espanha como moeda de troca; quando foi conveniente para seus objetivos ele parou de ajudar os espanhóis, e sem suas armas e aporte financeiro os fascistas tomaram o poder com extrema rapidez. Em troca, a Alemanha se comprometeu a não atacar a URSS, dando a Stalin o tempo necessário para reconstituir o estado-maior de seu exército, quase todo ele condenado e assassinado pelo próprio Stalin).

Esta primeira parte do romance, que ocupa pelo menos metade da narrativa, tem seu tom de análise político-partidária amenizada nos capítulos narrados na primeira pessoa por Iván, que pela estrutura criada por Padura, é tanto o narrador na primeira pessoa de alguns capítulos, quanto o “escritor” da história que estamos lendo, o que fica mais evidenciado para o leitor ao final do livro.

Além de adotar um tom mais leve e desprovido de análises dos bastidores da política internacional, envolvendo União Soviética e Europa, os capítulos narrados por Iván (dos três eixos da narrativa: Trótski, Mercader e Iván, este é o único personagem ficcional), além de descrevem seus encontros com o homem que amava os cachorros, são utilizados por Padura para uma interessante e sutil reflexão da realidade econômica, social e emocional de Cuba e dos cubanos no período. A narrativa de Iván revela a amargura e desilusão de um povo com seu país e sua história recente. Iván é um jovem jornalista e aspirante a escritor, que devido a um conto cujo conteúdo não agradou aos editores e àqueles que controlavam os meios de comunicação cubanos, é mandado para uma obscura cidade do interior para exercer uma função burocrática e medíocre na rádio da cidade. Ao voltar vê sua vida e seus sonhos da Juventude ruírem gradativamente. A Cuba das décadas de 60 e 70 expostas nesta primeira parte da narrativa está bem próxima do leitor, criando assim com ele uma identificação emocional que é de fundamental importância dentro da malha narrativa, com o objetivo de equilibrar os ásperos capítulos que se entremeiam e que expõem os meandros da Guerra Civil Espanhola e o périplo de Trótski pelo mundo nas décadas de 20 e 30, e sua guerra contra Stalin pela defesa dos ideais socialistas que moveram a revolução de 1917.

Padura entretanto não nos expõe assassinado e assassino como simples vítima e algoz. O personagem Trótski se angustia constantemente ao se espelhar em Stalin e rever suas ações autoritárias no passado, realizando assim uma espécie de mea-culpa. Se estivesse no lugar de Stalin hoje, pensava, não estaria agindo da mesma maneira com seus inimigos?


“Trótski carrega nas costas a responsabilidade de ter destruído líderes sindicais e de ter eliminado a democracia das organizações de operários. Ele se martirizava por ter contribuído para que estas organizações tenham se transformado em entidades amorfas que agora os burocratas stalinistas utilizavam ao seu bel-prazer para cimentar sua hegemonia. Ele, como parte do aparelho do poder, também tinha contribuído para assassinar a democracia que agora, como oposição, reclamava.”


Em diversas partes do livro Padura busca humanizar TrótskI, mostrando suas falhas, seus medos, seus erros, seu lado familiar - ele também um amante dos cachorros, mas por muitas vezes duro com os filhos. Nem mesmo seu efêmero caso extraconjugal com a pintora Frida Kahlo é relevado pelo autor. Por outro lado, Ramon Mercader não é pintado como um assassino frio e insensível, uma máquina programada para executar sua ordem de matar. Durante toda a narrativa o autor busca também humanizá-lo e deixar bem claro que ele foi o produto de uma ideologia cega, que via em Stalin o único representante possível do sonho socialista. “E se o camarada Stalin dizia que Trótski era um inimigo do povo Russo, o camarada Stalin sabia o que estava dizendo.” Stalin usou, de maneira extremamente inteligente e maquiavélica, no sentido lato do termo, Trótski e Hitler para se fortalecer. Se Trótski era o inimigo da pura ideologia comunista e do homem soviético, a União Soviética precisava de Stalin para defendê-la; se Hitler representava o nazismo e o fascismo na Europa, o mundo precisava da União Soviética e de Stalin para defendê-los. Quando Stalin percebeu que Hitler não era mais necessário para o seu fortalecimento, se uniu à Inglaterra e aos Estados Unidos para vencê-lo. Quando percebeu que TrótskI já não lhe era mais útil, começou a encaminhar sua morte.


“Horrorizado perante aquela evidência que lhe clarificava as razões pelas quais o tinham deixado partir para o exílio em vez de assassiná-lo nas estepes de alma-ata, compreendeu que, enquanto vivesse, seria a encarnação da contra-revolução: sua imagem mancharia qualquer exigência de mudanças políticas internas, sua voz soaria como corruptora de qualquer outra que exigisse o mínimo de verdade e justiça. Liev Trótski seria a medida capaz de justificar todas as repressões, de fundamentar a expulsão de críticos e pessoas incômodas, um dos lados da moeda inimiga dos comunistas do mundo: a peça que, para ser perfeita, rapidamente teria em seu reverso a imagem de Adolf Hitler."


Ramon Mercader - logo após sua prisão no México

E é neste contexto que acompanhamos a transformação de Ramon Mercader, de um soldado republicano a espião e potencial assassino treinado. Mercader vai sofrendo transformações programadas de personalidade durante o romance, que acompanha seu processo de treinamento e preparação para cumprir sua grande missão. Durante toda a narrativa, a partir do momento em que profere o “sim” que mudará sua vida, Mercader assume diversas identidades: Adriano, Soldado 13, Jacques Mornard e Frank Jacson. O trabalho dos psicólogos e dos técnicos soviéticos no campo de treinamento de Malakhovka era limpar Ramon por dentro, prepará-lo para uma nova personalidade: um passado inventado, novos gostos, características, maneirismos, até sua língua de origem seria outra: o francês. Esse processo longo e psicologicamente invasivo teve um efeito devastador na vida de Mercader:


“O trabalho que a partir desse momento os instrutores empreenderam foi o de demiurgos platônicos: verdadeiros criadores. Falavam de Jacques como se o conhecessem desde sempre e implantavam-lhe memórias, ideias, formas de reagir perante determinadas situações, respostas às perguntas mais simples e às mais complexas. Foi um processo lento, de repetições sucessivas, interrompido às vezes para permitir que as informações fermentassem no subconsciente de Jacques... “


Posto isto, o leitor já contextualizado historicamente e familiarizado com os três protagonistas, adentramos à segunda parte da história. Mercader e Trótski estão no México: (“Assim que atracaram os Trótski foram envolvidos por um turbilhão de alegria. Vários amigos de Frida e de Rivera, juntamente com os correligionários norte-americanos vindos com Shachtman e Novack, envolveram-nos numa onda de abraços e felicitações que operaram o milagre de fazer Natália Sedova chorar.”) Após fazer algumas deliberações e longas explanações sobre as questões políticas na URSS e sobre as relações políticas de Trótski no México e também nos descrever sua relação, no início idílica, e depois extremamente conturbada com Diego Rivera, o livro ganha, quase atingindo seu terço final, um ritmo de thriller. As duas perspectivas, a de Trótski e Mecader, se aproximam no tempo e no espaço, até se tornarem duas “visões” do mesmo e derradeiro fato. Esse dinamismo intenso e envolvente da narrativa, que surge por volta do capítulo 22, transforma a leitura da parte final do livro em uma experiência literária extremamente instigante e prazerosa (depois do longo processo de instrução, vem a recompensa idílica do puro prazer da leitura). Com Mercader passando a “rodear” a casa dos Trótski, até finalmente sua aceitação em seu interior, com a mudança do casal russo da Casa Azul de Frida e Rivera, e com o atentado de maio, a narrativa vai se fechando em um movimento vertiginoso de espiral, até atingir seu clímax, ou podemos dizer, seu anticlímax: o assassinato de Leon Davidovitch Trótski.

Natália Sedova, Frida Kahlo e Leon Trótski

O jornal francês L’Humanité, disse sobre o romance de Padura, “que este é um livro construído sobre a ruína de um sonho.” E o pano de fundo do romance de Padura é exatamente o desencanto do projeto comunista, pervertido nas mãos de homens e governos inescrupulosos, que abandonaram os preceitos ideológicos ancorados em uma sociedade mais justa e igualitária, para construírem ditaduras sanguinárias, como a de Stalin, onde apenas a manutenção e perpetuação estéril do poder importa. Neste trecho que reproduziremos a seguir, Iván escreve sobre a década de 90 e o processo de desencanto dos regimes socialistas:


“Aqueles dez anos (dentro da estrutura do romance, de 1994 a 2004) acabaram por ser, além disso, os que viram nascer e morrer as esperanças da perestroika e que provocaram em muitos o espanto gerado pela abertura da glasnost soviética, pelo conhecimento do verdadeiro rosto de personagens como Ceausescu e pela mudança de rumo econômico na China, com consequente revelação dos horrores da sua Revolução Cultural genocida, realizada em nome da pureza marxista. Foram os anos de uma ruptura histórica que alteraria não só o equilíbrio político do mundo, como as próprias cores dos mapas, as verdades filosóficas e, sobretudo, mudaria os homens. Naqueles anos, atravessou-se a ponte que ia do entusiasmo por aquilo que é suscetível de ser melhorado à decepção de comprovar que o grande sonho estava com uma doença fatal e que em seu nome até genocídios tinham sido cometidos, como do Camboja de Pol Pot. Por isso, no fim, o que parecia indestrutível acabou desfeito, e o que considerávamos inacreditável ou falso acabou por ser a ponta de um iceberg que escondia em suas profundezas as verdades mais macabras daquilo que acontecera no mundo pelo qual Ramon Mercader lutara. Aquelas foram as revelações que nos ajudaram a focalizar os vultos imprecisos que, durante anos, só tínhamos entrevisto na penumbra e a atribuir-lhes um perfil definitivo, tão pavoroso como se pode imaginar. Aqueles foram os tempos em que se concretizou o grande desencanto."


Um dos pontos fundamentais desta obra é o seu lugar de narração. O “narrador”, tanto direto quanto indireto, do livro que temos em mãos, é Iván, que se envolve com seu processo de escrita desde o momento em que se encontra com Lopes em 1977, e ouve, da boca deste, a história de Ramon Mercader, até o ano de 2004. Iván é fruto de uma geração desencantada, de pessoas que nasceram por volta de 1959, ano da Revolução Cubana, e cresceram sobre a égide da esperança e da confiança em um mundo melhor e mais justo, ou pelo menos uma Cuba que lhes permitisse realizar seus sonhos de juventude: viajar, ter uma bela casa, um emprego que lhes desce satisfação, prazer e dinheiro, um carro novo; mas que tudo isso se desse de forma igualitária, dentro dos conceitos do socialismo. Iván e sua geração acreditavam no sonho vendido pela revolução castrista, e iam para o campo como voluntários para cortar cana e ajudar o país a prosperar e passar por aqueles anos difíceis de pós-revolução; mas os anos 60 e 70 se foram, vieram os anos 80 e a terrível década de 90. Com o fim da URSS e consequente suspensão dos subsídios soviéticos, além da manutenção do cruel e desumano bloqueio econômico liderado pelos Estados unidos, Cuba mergulha na maior crise de sua história, onde o sonho de um país próspero e de um povo feliz e realizado, que alcançaria seus objetivos espirituais e materiais ancorados em um sistema econômico e social justo e igualitário, desmorona de maneira melancólica. Padura consegue nos passar essa realidade desencantada do povo cubano, em poucos, mas emblemáticos trechos do romance, principalmente em sua contextualização histórica. As primeiras páginas do Capítulo 28 são talvez algumas das mais inspiradas da moderna literatura cubana. Aqui estão, simbolizadas na data da mudança do milênio, a desesperança, a amargura e a desilusão de um povo com seu país e com sua história recente. Durante quase todo o capítulo, o autor nos dá rápidas pinceladas sobre a triste realidade da Cuba da década de 90, vítima indireta do insucesso soviético, da monstruosidade de Stalin e da morte de Trótski. E aqui vemos claramente o link de Cuba com a história de Trótski: sua morte e os desmandos de Stalin, foram a pedra fundamental no processo de descrédito da União Soviética e do comunismo como sistema socioeconômico justo e igualitário:


“Soube então que para muitos da minha geração não seria possível sair incólumes daquele salto mortal sem rede. Éramos a geração dos crédulos, a dos que romanticamente aceitaram e justificaram tudo com os olhos postos no futuro, dos que cortaram cana convencidos de que deviam cortá-la (sem cobrar, evidentemente, por aquele trabalho infame); a dos que foram para uma guerra nos confins do mundo porque assim exigia o internacionalismo proletário, sem esperar outra recompensa que não fosse a gratidão da humanidade e da história; a geração que sofreu e resistiu aos embates da intransigência sexual, religiosa, ideológica, cultural e até alcoólica apenas com um gesto de cabeça e muitas vezes sem se encher de ressentimento ou do desespero que conduz à fuga, esse desespero que abria agora os olhos dos mais jovens e os levava a optar pela fuga mesmo antes de levarem o primeiro pontapé na bunda. Tínhamos crescido vendo (era este o grau da nossa miopia) em cada soviético, búlgaro ou tchecoslovaco um amigo sincero, como dizia Martí, um irmão proletário, e tínhamos vivido sob o lema, tantas vezes repetido em cerimônias escolares, de que o futuro da humanidade pertencia por completo ao socialismo.”


No penúltimo capítulo do livro, já em Moscou, depois de solto da prisão mexicana, um Mercader frustrado, consciente de seu equívoco histórico, junto com seu antigo mentor, que o preparou para o assassinato de Trótski, refletem sobre seus erros, sobre Stalin, a atual União Soviética, Trótski, e sobre o que fizeram com suas vidas, doadas para uma causa falaciosa, enredados por uma rede de mentiras criada por Joseph Stalin. O capítulo tem um tom extremamente melancólico e lúgubre, e até somos levados a sentir pena de Mercader, ou pelo menos entender seu erro, cego por uma ideologia que não o permitia enxergar, o que dirá ter uma visão ampla e histórica do que estava acontecendo naquele momento. Leonardo Padura narra de uma maneira que nos faz compadecer do auto-engano de Mercader. Ele nos mostra o fim - de maneiras distintas - de duas vidas (a de Leon Trótski, um dos líderes da Revolução Comunista russa, e a de Ramon Mercader, jovem combatente republicano da Guerra Civil Espanhola), e indiretamente de várias outras: Natália, esposa de Trótski, seus filhos e de mais milhões de pessoas mortas pelos ditames de dois homens: Hitler e Stalin.

Ramon Mercader - em seus últimos anos, já na URSS

Contudo, algo que o leitor não deve perder jamais de vista é a consciência que, todo romance histórico que se utiliza de personagens reais, corre o risco de cair na armadilha de criar perfis para esses personagens que nunca condizem inteiramente com os indivíduos que os inspiraram, de humanizá-los ao extremo, até mesmo pela grande convivência com eles durante o processo de pesquisa. Este Ramon Mercader de O homem que amava os cachorros, é um personagem equidistante do verdadeiro Ramon, e daquele Ramon que foi imaginado por aqueles leitores que já conheciam sua história. Um romance histórico e/ou um romance biográfico narrado “por dentro”, possui todos os problemas de verossimilhança que isto traz, e que o nome “romance”, por si só, não resolve.

As últimas três páginas do livro são antológicas e de grande simbolismo. Iván morre soterrado pelo teto carcomido de sua casa, que cai sobre ele durante seu sono. Essa ruína significa a ruína de uma cidade, de um país, de um povo, de um sonho; o sonho cubano das décadas de 60, 70 e 80, e que virou um pesadelo na década de 90. O amigo de Iván, que herda seus papéis, com a história que escreveu e que se torna o narrador no último capítulo, assim escreve, em um jorro de revolta contra aqueles que têm a pretensão de decidir por nós, e transforma o próprio Trótski em algoz, assim como Mercader, Hitler e Stalin:


“Embora tenha tentado evitar e tenha me agitado e negado, enquanto lia fui sentindo como era invadido pela compaixão. Mas só por Iván, só pelo meu amigo porque ele sim a merece - e muita: merece-a como todas as vítimas, como todas as trágicas criaturas cujo destino é dirigido por forças superiores que as ultrapassam e as manipulam até as transformarem em merda. Essa foi a nossa sina coletiva, e que Trótski que vá para a puta que o pariu se, com seu fanatismo de obcecado e seu complexo de ser histórico, não acreditava que existissem as tragédias pessoais, mas apenas as mudanças de etapas sociais e supra-humanas. E as pessoas? Algum deles pensou alguma vez nas pessoas? Perguntaram-me, perguntaram a Iván, se concordávamos em adiar sonhos, vida e todo o resto até que se evaporassem (sonhos, vida e o raio que o parta) no cansaço histórico e na utopia pervertida?”


Ao final do livro, ao vermos o que aconteceu com o sonho comunista que ruiu, ao percebermos hoje, em que bases se apoiam nossas sociedades, sustentadas por um sistema político, social e econômico injusto, desigual e cruel, e a conivência e passividade com que o homem tornou-se expectador, passageiro desprivilegiado ou vítima deste comboio de destruição que é o imperialismo econômico e os falsos socialismos, que podemos concluir que a humanidade, como ser institucional, sofre da mesma doença que atingiu Truco, o cachorro de Iván: a melancolia. E como disse o próprio Iván, é uma doença que ou se cura ou pode matá-la, no caso, a humanidade. Tomando das palavras de Iván, fazemos parte de uma história de traições, mentiras, interesses, ambições, egoísmos, e que não pedimos para ser personagens; mas qual outra alternativa nos resta? Se somos obrigados a fazer parte da história, que pelo menos tentemos reescrevê-la com outras tintas, outras cores; mas isto também já não foi tentado antes? Tantas e tantas vezes? “Que porra fazer com a verdade, a confiança e a paixão?’’ E o livro nos deixa uma pergunta implícita: nossa geração padece de um cansaço histórico?


Leonardo Padura


(A edição usada como referência para este ensaio, é a terceira reimpressão da segunda edição, datada de 2019 e lançada pela Boitempo Editorial. Para aqueles que além da leitura do romance de Padura se interessarem em se aprofundar no assunto, existem várias biografias de Trótski traduzidas e disponíveis no Brasil, além de biografias de Frida Kahlo e Diego Rivera que narram a passagem e a morte de Trótski no México. O escritor espanhol Jorge Semprún também se debruçou sobre as histórias de Trótski e Mercader, em um livro lançado em 1969, intitulado: "A segunda morte de Ramón Mercader". Existem também diversos filmes e uma série recém lançada que tratam do tema.)



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