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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

O LIVRO NEGRO







O LIVRO NEGRO

Orhan Pamuk



A questão central de O Livro Negro, e que praticamente perpassa todo o romance, é o dilema individual da procura de si mesmo; o objetivo perseguido e nunca alcançado pelo ser humano, conforme a visão de Pamuk, e especificamente nesta obra, jamais alcançado pelo homem turco, e mais precisamente pelos habitantes de Istambul. Segundo o autor, nunca conseguimos ser nós mesmos, sempre queremos ser outra pessoa, que na verdade é o “eu” que não conseguimos ser.

Neste romance, o personagem Galip acorda certa manhã e sua esposa, a bela Rüya, havia partido, deixando para ele apenas um conciso e ambíguo bilhete. A partir deste ponto - após descortinar para o leitor uma breve história de sua família e a maneira pela qual sua prima Rüya entra em sua vida - Galip inicia uma intensa busca por sua mulher e por Celâl - meio irmão de Rüya, e também desaparecido, ou pelo menos escondido de todos – pelas ruas de Istambul. O livro torna-se então um errar pelas ruas de Istambul, desde as mais conhecidas até os becos mais recônditos. Galip vai e vem pela cidade, envolvido por uma aura de mistério e permeando praças e monumentos. Assim, a Torre Gálata, as praças de Nisantasi e Taskim, o Palácio de Dolmabahçe e as dezenas de mesquitas da cidade, vão se descortinando aos olhos do leitor. Istambul assume na obra de Pamuk como um todo, e neste livro em particular, uma função determinante, não só de personagem e protagonista, mas de marco histórico e sociológico para análises que procuram compreender a essência do homem turco e do lugar da Turquia na história moderna e na divisão geopolítica de nosso planeta.



Como já apontamos no inicio deste texto, o ponto central do livro, em um primeiro momento, é a questão identitária da busca de si mesmo; contudo, esta questão, na verdade, encaminha o leitor para o verdadeiro fulcro da obra, ou seja, a busca de uma identidade turca, e de maneira mais direcionada, a busca de uma identidade para a cidade de Istambul; nação e cidade divididas entre dois continentes, entre o ocidente e o oriente, entre culturas opostas e muitas vezes conflitantes. Para o autor, a questão primordial de Istambul e do povo turco, é descobrir como fazer para equacionar essas dicotomias e polaridades e poder “sermos quem somos”, para assim se salvar como nação. No capítulo 35 nos é contada por Galip/Celâl, uma história que começa assim: “Era uma vez, na cidade onde nos encontrarmos, um príncipe herdeiro que descobriu que, para todo homem, a questão mais importante da vida era poder, ou não poder, ser ele mesmo.” E mais a frente aprofunda a questão:


“O príncipe Osman Celâlettin Efendi julga que existe nesta terra maldita, esta terra coberta de esgotos, uma questão primordial para todos os homens: como fazer para ser quem somos? E é só encontrando uma solução para esse problema que podermos ter esperança de salvar nosso povo da decadência, da derrota e da escravidão. Na opinião de Osman Celâlettin Efendi, todos os povos que não conseguirem encontrar algum modo de ser quem são estarão condenados à escravidão, as raças estarão condenadas à degeneração, e as nações estarão condenadas a desaparecer; a desaparecer.”

Durante todo o livro acompanhamos Galip em sua busca por Rüya - que ele acredita estar escondida junto com o meio-irmão em um dos diversos endereços que Celâl utiliza pela cidade para fugir de perseguidores políticos e religiosos -, e em seu processo de transformar-se em um outro, o que na verdade é sua busca pessoal de ser ele mesmo. Galip aos poucos assume a identidade de seu primo Celâl, um prestigiado cronista jornalístico que mantem uma coluna há décadas em um dos principais jornais do país. Celâl, por ser mais velho que Galip, sempre exerceu sobre este uma grande influência intelectual e espiritual. Ao assumir a identidade de seu primo e ocupar o seu apartamento (o antigo apartamento que seus tios moraram décadas atrás e onde Celâl e depois, Rüya haviam sido criados), e dessa forma ter acesso a todos os papéis, recortes, fotos, ou seja, a toda a memória artística e familiar do primo, Galip busca ser no final deste processo, ele mesmo.

Celâl é retratado no romance, e visto por seus admiradores, como um salvador, um novo libertador em um país com uma história repleta dessas figuras messiânicas. Galip, e muitos dos leitores de Celâl, acreditam que ele fala com eles através de códigos deixados em suas crônicas, crônicas estas que tratam de assuntos diversos, mas que contêm, segundo seus seguidores, mensagens sub-reptícias sobre um juízo final, senão religioso, pelo menos político e cultural para a Turquia; o que abriria as portas para que o país se descobrisse e se revelasse como ele mesmo, dono de uma identidade própria, que se apropria das culturas ocidental e oriental plasmando um povo identitariamente único e autônomo. Um desses “discípulos” do cronista, ao falar com Galip pelo telefone, achando que se dirigia ao próprio Celâl, diz:


“Ó meu irmão, sei que você maneja uma pena poderosa, uma pena capaz de tornar reais todos esses sonhos - e fábulas muito mais implausíveis ainda do que eles -, além de milagres que os outros consideram impossíveis. Com suas belas palavras, e com as memórias espantosas que logo estará tirando do poço sem fundo que é sua mente, você poderá dar vida a esses sonhos. Se nosso farmacêutico de Kars conseguiu, por anos a fio, conhecer todos os detalhes das ruas em que você passou sua infância, é porque adivinhava sonhos escondidos entre suas linhas; devolva os sonhos dele. Houve um tempo em que suas crônicas despertavam calafrios na espinha dos deserdados de toda a Anatólia, trazendo-lhes arrepios e perturbando-lhes a memória ao fazê-los acreditar nos dias felizes que os esperavam, como se esses artigos falassem dos dias de férias da sua infância, com seus balanços e carrosséis.”


Para compreender melhor a obra de Orhan Pamuk, que por sua vez tenta compreender o povo turco, é necessário conhecer um pouco da história deste povo que passou por diversas transformações étnicas, culturais e religiosas através dos séculos. Desde suas origens, por volta dos séculos V e VI - passando pelo império Otomano, que dominou uma larga região da Europa e da Ásia, entre o século XIV e a segunda década do século XX, quando após a primeira guerra mundial foi desfeito e seus territórios divididos - até períodos recentes, onde enfrentou golpes militares antidemocráticos nos anos de 1960, 1971, 1980 e 1997.

A história narrada em O livro negro, se passa entre as décadas de 50 e 70, ou seja, no meio de uma série de conflitos armados que atacavam frontalmente o processo democrático do país e também se tornaram responsáveis por certo “atraso” na construção de uma identidade cultural, política, religiosa e territorial para este país por si só tão complexo em suas nuances sociológicas e geopolíticas.

A questão borgeana do “outro” permeia todo o romance. Pamuk faz uso da alegoria do espelho em vários trechos do livro para exemplificar esta busca do outro, daquele que quero ser, do eu mesmo, da construção de um viés identitário próprio mas ao mesmo tempo construído a partir de outros (vieses identitários), muitas vezes contraditórios entre si. A busca deste “ser eu mesmo” é um contraponto, como já indicamos, à duplicidade continental e cultural de Istambul e da Turquia como um todo. Como podemos inferir no trecho seguinte em que o narrador dirige seus pensamentos diretamente ao seu primo Celâl. Seu “outro”:


“O que eu procurava talvez fosse aquele estado de espírito. Eu finalmente conseguia abrir a porta que dava para a minha alma, ingressando num novo universo. Pela primeira vez, depois de tantos anos de tentativas e fracassos, eu finalmente conseguia ser eu mesmo e outra pessoa ao mesmo tempo. (...) Nesse caso, escute. Esse ‘mistério’, esse ‘segredo’ que você nos fez perseguir por todos esses anos – eis a conclusão a que eu cheguei sobre essa verdade, sobre a qual você escrevia sem conhecer ou entender direito o que significava: neste nosso país, ninguém pode ser quem é! Num país de oprimidos e derrotados, existir é ser um outro! Sou uma outra pessoa, logo existo!”


O uso que Pamuk faz da figura do espelho como alegoria do outro, do reflexo que reproduz mas ao mesmo tempo modifica o original, não é de forma alguma fortuito, pois pelo contrário, faz parte da tradição literária árabe (aliás, dezenas de autores da tradição literária do oriente médio são citados no corpo da obra) da história dentro da história, dentro de outra história. Celâl, o cronista, no fundo é um tradicional turco contador de histórias. A própria estrutura do romance evidencia isso; os capítulos são intercalados, após cada capítulo que acompanhamos a saga de Galip, temos um capítulo com uma crônica de Celâl, até que o próprio Galip passa a escrever as crônicas e assinar como seu primo, inclusive adquirindo o estilo deste. E mesmo nos capítulos que contam a história de Galip, Rüya e Celâl (os dois últimos personagens só aparecem na história indiretamente, através das memórias de Galip e dos textos do próprio Celâl), a presença de histórias moralizantes, no melhor estilo das Mil e uma noites, é uma constante e busca cumprir sua função de peças dentro de um quebra cabeças que o autor busca, não só neste livro, mas em praticamente toda sua obra, montar: a Turquia e seu povo.

O livro negro não é um romance fácil de ser lido, e muitas vezes nem mesmo agradável, mas é uma grande contribuição literária e intelectual para o entendimento (de nós, leitores estrangeiros) e para o autoconhecimento (deles, leitores nativos) do “ser” turco e da Turquia como nação.


(O presente texto teve como fonte básica a primeira edição da tradução de Kara Kitap (título original de O Livro Negro), lançado pela Companhia das Letras em 2008 - dois anos após o autor turco ter sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura -, com tradução de Sérgio Flaksman)

Orhan Pamuk


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