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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

O PAÍS DAS NEVES


O PAÍS DAS NEVES


Yasunari Kawabata




Yasunari Kawabata é um dos maiores nomes da história da literatura japonesa. Laureado com o prêmio Nobel em 1968, suicidou-se em 1972, dois anos depois de seu compatriota, talvez o autor japonês mais conhecido no ocidente, Yukio Mishima. Kawabata ao receber o Nobel sentiu-se constrangido de ter sido escolhido em detrimento do amigo mais jovem, e segundo ele, mais merecedor do prêmio.



Nascido em 1899, Yasunari Kawabata faz parte de uma das primeiras gerações de escritores herdeiros da Era Meiji. A Era Meiji se notabilizou por protagonizar a abertura do Japão e da sua cultura para o ocidente, influenciando e sendo influenciado por este. Durou de 1867 a 1912, e substituiu o xogunato - um sistema feudal de base militar, onde o Xogum, uma espécie de General com plenos poderes, exercia o controle do país, relegando ao Imperador um poder simbólico - que prevaleceu no Japão do século XII até 1867. Durante os 45 anos da Era Meiji o Japão alcançou um grande desenvolvimento econômico, tornando-se um país industrializado. Durante esse período a cultura do Japão tanto deixou suas fronteiras invadindo a Europa, como foi invadida pela cultura europeia. É interessante lembrar a avalanche de gravuras, cerâmicas e peças artísticas ou mesmo de artefatos de guerra (como espadas, armaduras, escudos, etc…) que inundaram a Europa, principalmente Paris e Londres, no último quarto do século XIX. Pintores como Degas, Monet, Manet, Van Gogh e escritores como Émile Zola, por exemplo, eram admiradores e colecionadores de objetos artísticos, ou de simples artesanatos da cultura japonesa. Nos romances de Kawabata percebemos claramente a influência da cultura europeia em seus personagens; da maneira de se vestir, passando pelo linguajar, até o gosto artístico. Shimamura, o protagonista de O país das neves, é um grande admirador da dança ocidental, apesar de nunca ter visto uma apresentação. Seu conhecimento se atém aos livros teóricos a que tem acesso; o que, segundo ele, causa um distanciamento edificante: ele não assistia a arte da dança ao vivo, assistia à ilusão da dança de sua própria imaginação, provenientes dos textos e das fotos a que tinha acesso. Com base nisto seus textos de crítica artística se deslocaram da dança tradicional japonesa para as danças ocidentais:


“Mas no momento em que era assediado por jovens mestres da dança japonesa, subitamente voltou-se para a dança ocidental. Passou a não mais assistir apresentações de dança japonesa. Em compensação, começou a reunir livros e fotos sobre a dança ocidental e até fazia sacrifícios para conseguir pôsteres e programas de espetáculos do exterior. A alegria que descobriu aí vinha do fato de não poder vê-los ao vivo.”


Em contraste com a ocidentalização de Shimamura, Kawabata nos dá Komako, uma típica gueixa que trabalha entretendo os frequentadores de uma estação termal de esqui na região chamada de país das neves. Komako é uma gueixa clássica, daquelas que frequentam o imaginário ocidental até hoje, e que tiveram seus anos dourados entre o final do século XVII até a segunda guerra mundial, quando muitas prostitutas se disfarçavam de gueixas para agradar os oficiais americanos. Diferente do que muitos pensam, as gueixas não são prostitutas, e sim mulheres que são contratadas para entreter os homens; através da dança, declamando poemas, preparando chás, cantando, representando, ou simplesmente conversando, já que sua formação, que se inicia quando elas são ainda bem jovens, antes dos dez anos de idade, envolve um profundo conhecimento artístico e cultural. Na verdade as gueixas são estudiosas das artes e da cultura japonesa. Inclusive a tradução mais aproximada de gueixa nas línguas ocidentais, é “artista”. As jovens se preparam durante anos, são treinadas, se tornam aprendizes de gueixa, Maiko (pequena dançarina), até se tornarem uma gueixa profissional. Toda a indumentária, o quimono, o obi (cinta que envolve o quimono), o complexo penteado armado, até a pesada maquiagem branca à base de pó de arroz, faz parte da tradição secular das gueixas. E como a própria Komako explica a Shimamura: as gueixas - como já enfatizamos - não são prostitutas, e a decisão de dormir com o cliente é delas. A gueixa é uma mulher com múltiplos talentos artísticos que deve ser seduzida e conquistada, caso o cliente deseje dormir com ela. Não é apenas uma questão financeira, como o autor deixa bem claro neste trecho a seguir, onde Komako repreende Shimamura


“ - Por isso chame uma gueixa para mim.

-Agora?

- É.

- Fico abismada, não é possível fazer nada assim, em plena luz do dia.

- É que não quero ficar com as sobras.

- O que está dizendo? Não está confundindo esta estação termal com termas de prostituição, está? Será que não percebe só de olhar a vila? - disse a mulher em tom bastante sério e incrédulo, explicando mais uma vez que ali não existiam tais mulheres. Frente à dúvida de Shimamura, ela ficou ainda mais irritada, mas cedeu um pouco, dizendo que a decisão de dormir com o cliente é da gueixa. A diferença era que, sem permissão, a responsabilidade seria da gueixa e nada que lhe acontecesse seria da conta da hospedaria. No entanto uma vez comunicada a permissão, a responsabilidade era do patrão, que lhe daria todo o apoio.

- O que significa responsabilidade?

- No caso de engravidar ou adoecer, por exemplo…”


Komako é uma gueixa pela qual Shimamura, casado e com filhos, morando em Tóquio, se apaixona, e que o faz visitar anualmente a estação de esqui e as termas, com a desculpa de desvendar as trilhas das montanhas próximas. Ele se sente preso a Komako - e ela a ele -, e nas frias noites de inverno no país das neves - após Komako voltar bêbada de seu trabalho de gueixa - os amantes se entregam nos braços um do outro.



O período em que Shimamura visita as termas e Komako, é extremamente emblemático no romance. A neve é uma personagem da história e o pano de fundo que emoldura quase todas as páginas do livro. A figura poética da neve é condizente com o estilo literário do autor. A prosa de Kawabata é extremamente lírica, às vezes, só às vezes, quase enfadonha. O escritor cria verdadeiros quadros “pintados” com palavras. Suas descrições tem uma carga poética e imagética tão poderosa, que o leitor irá se deparar com vários trechos que têm a força sinestésica de penetrar por nossos olhos e criar em nossa mente imagens de uma beleza ímpar. Um pintor talentoso criaria obras-primas levando para as telas algumas das imagens descritas por Kawabata em palavras, como por exemplo, logo no início do livro, a antológica descrição que o autor faz do reflexo do rosto de Yoko na janela do trem - transformada em um espelho pelo contraste das iluminações externa e interna -, no fim da tarde, com a paisagem de céu e montanha correndo por trás do rosto flutuante da personagem:


“ No fundo do espelho, corria a paisagem do entardecer, isto é, o que se via através do vidro e o que se refletia no espelho moviam-se como imagens sobrepostas de um filme. Os personagens e o cenário não tinha nenhuma relação entre si. Além disso, sendo eles de uma fugacidade translúcida, e a paisagem de uma fluidez vaga de cair de tarde, a fusão de ambos desenhava um mundo simbólico. Particularmente, quando os últimos raios de sol da mata iluminaram em cheio o rosto da moça, Shimamura chegou a sentir o coração palpitar diante daquela beleza inexprimível. O céu das montanhas mais distantes ainda guardava os resquícios da vermelhidão do pôr do sol. Por isso, bem ao longe, os contornos da paisagem através do vidro da janela ainda continuavam nítidos, mas já sem cor, e as montanhas infinitamente monótonas pareciam ainda mais triviais. Por não haver nada mais atraente, tudo aquilo tornava-se um imenso fluxo de emoção anuviada, obviamente por que ele imaginava o rosto da moça flutuando nesse quadro.”


A personagem que Shimamura vê dentro do trem, com seu rosto refletido na janela, se mostrará, durante a história, a grande incógnita do romance. A sua personalidade introspectiva; a relação ambígua que mantém com Komako; suas aparições relâmpagos - com exceção do diálogo que trava com Shimamura -; sua relação com o filho da professora, que nos induz a pensar em um triângulo amoroso do passado entre o rapaz, komako e ela; o interesse, que oscila entre a curiosidade e a atração erótica, de Shimamura por ela, o que faz o leitor pensar em um possível triângulo amoroso, agora entre Komako, Shimamura e Yoko; e finalmente a cena final do livro, em que Komako carrega Yoko desfalecida em seus braços e grita: “Saiam, saiam, por favor! - Shimamura ouvia os gritos de Komako - esta menina é louca, é louca.” Tudo isso faz de Yoko uma personagem fluida, incompreensível, inapreensível, irreal, intangível, como sua imagem que Shimamura vê refletida na janela do trem.


Imagens refletidas são uma constante no livro. Shimamura também vê Komako refletida no espelho de seu quarto da hospedaria, com a neve como pano de fundo:


“Shimamura a observou e encolheu os ombros. O espelho brilhava alvíssimo por causa da neve, de onde saltava o rosto vermelho da mulher, Havia uma beleza asseada indescritível naquele contraste.” Talvez pelo raiar do sol, o brilho da neve no espelho era mais intenso, como se ela queimasse gelada. Acompanhando esse movimento, o cabelo da mulher que sobressaía no reflexo da neve também intensificou o preto, que brilhava lilás.”


Kawabata contrasta a poesia e a harmonia da natureza descrita - as montanhas, a neve, o vilarejo bucólico -, com os conflitos internos dos personagens. Shimamura é um homem que se autodefine como um bon vivant: casado, pai de dois filhos, exerce seu trabalho de forma diletante (fica implícito que ele é um homem rico e que dinheiro não é uma preocupação) e tem sentimentos contraditórios em relação a Komako. A culpa em relação a ela e a dúvida constante se deve voltar a vê-la na próxima estação, começam a atormentá-lo, assim como sua curiosidade em relação a Yoko. Já as personagens femininas, principalmente Komako, com quem o leitor tem mais contato, são contraditórias em si mesmas:


“Após algum tempo, Shimamura disse de forma inesperada:

- Você é uma boa moça.

- Por quê? Onde está a qualidade?

- É uma boa moça.

- É mesmo? Como o senhor é desagradável… O que está dizendo? Não está fora de si? - disse Komako espaçadamente, como se batesse na mesma tecla, indignada, sacudindo-o. Depois calou-se.

Em seguida, rindo sozinha, disse:

- Não sou. Faça o favor de ir embora porque é difícil para mim. Já não tenho quimonos novos para vestir. Gostaria de usar um diferente sempre que venho aqui, mas não tenho outros, este que estou usando é emprestado de uma amiga, sabia? Sou tão boa assim?

Shimamura ficou sem palavras.

- Onde é que sou boa, agindo desse jeito? - Komako estava quase em prantos - Quando nos encontramos pela primeira vez, achei o senhor uma pessoa desagradável. Ninguém diz coisas tão desrespeitosas. Não gostei nada daquilo.

Shimamura concordou com um movimento de cabeça.”


Durante todo o livro o autor utiliza-se do contraponto. É uma relação dialética que coloca a história em movimento: de um lado os conflitos e contradições dos personagens, narrados de forma confusa e um tanto sufocante para o leitor, em contraposição temos descrições da natureza repletas de frescor e beleza poética. Alguns parágrafos depois da crise de Komako reproduzida aqui, Kawabata nos brinda com essa imagem: “A temporada dos Bordos portanto já chegou ao fim. Imensos tufos de neve que lembravam peônias caiam com leveza do céu cinzento emoldurado pela janela e, planando, vinham na direção deles. Parecia uma ilusão silenciosa. Shimamura olhava com o torpor de quem dormiu pouco.” E é este contraponto que retroalimenta a história e o conflito do leitor entre trechos agradáveis de leitura, e outros confusos e sufocantes.


Um outro contraponto em que o livro se baseia é que, apesar de Kawabata ser considerado um autor da Era Meiji - ou pelo menos influenciado por ela, já que a Era Meiji em si durou apenas até 1912, mas deixou marcas indeléveis na cultura japonesa -, e o Japão que aparece em suas páginas, assim como seus personagens, sofrerem grande influência da cultura ocidental, percebemos no autor uma preocupação quase didática - como se soubesse que seu livro iria cruzar fronteiras espaciais e temporais, ou como se pudesse prever que os japoneses de hoje precisassem resgatar suas tradições - de mostrar para o mundo um pouco da milenar cultura japonesa. O livro é repleto de referências culturais, como por exemplo dezenas de expressões e palavras em japonês, que precisam contar com as explicações das notas de pé de página do tradutor. Yasunari Kawabata faz questão de nos descrever comidas típicas, trajes, vegetação, de introduzir o leitor no mundo das gueixas e da tradicional e milenar técnica de tecelagem e alvejamento do shimiji, um tipo de tecido que precisa ser tramado em regiões frias, no inverno, para que seus fios guardem o frescor e a friagem e possam refrescar seus usuários no verão.


Ler Kawabata é imergir de forma lírica no universo da cultura nipônica. Nos deliciamos com retratos paisagísticos pintados com verbos, adjetivos e substantivos, e temos acesso a um mundo até então pouco conhecido no ocidente (O país das neves é de 1937), mas ao mesmo tempo sentimos as angústias e conflitos de personagens que se veem perdidos, à deriva, procurando entender este novo Japão que nasce da relação contrastante e conflituosa com o ocidente.


(Usamos como base para este ensaio a 4° edição lançada pela editora Estação Liberdade em 2004, com tradução de Neide Hissae Nagae. Existem mais duas edições disponíveis no mercado brasileiro, encontrado em sebos espalhados pelo país; uma da Nova Fronteira, de 1957, e outra do Círculo do Livro, de 1974. A primeira edição japonesa, e também sua primeira versão - pois o autor lançaria uma segunda versão dez anos depois, terminada a Segunda Guerra Mundial -, é de 1937 e tem como título: Yukiguni. A estação termal que aparece na história foi inspirada na estação de Yusawa, que o autor visitou pela primeira vez em 1934, ou seja, três anos antes do lançamento da primeira versão do romance.)


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