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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL

Atualizado: 23 de ago. de 2020


SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL


Haruki Murakami




O VAZIO TAMBÉM É UM LUGAR





“O vazio continuava sendo apenas um vazio. Passei muito tempo imerso nele. Tentando me habituar a ele. ‘No fim foi aqui que cheguei’, pensei. Preciso me acostumar com este lugar.”




O escritor japonês Haruki Murakami, que nas duas últimas décadas vem sempre sendo lembrado como um dos nomes cotados para ganhar o Prêmio Nobel de literatura, é constantemente criticado no japão, por uma corrente mais purista da crítica, por não retratar, ou retratar pouco, a cultura japonesa em seus livros. Isso pode até ser uma verdade; realmente, em grande parte de sua obra, não vemos aquele japão estereotipado ou exótico que muitos leitores ocidentais procuram. E este Japão não tem razão nenhuma para estar ali, pois a literatura de Murakami é muito mais introspectiva do que voltada para o estudo de costumes de uma cultura, de um povo. Os dramas, anseios, desesperos e vazios existenciais que seus personagens sofrem são, de uma maneira geral, atemporais e independentes do lugar geográfico. Isso não quer dizer que a condição de japonês, de indivíduo do mundo contemporâneo, não forme e informe as personalidades e a visão de mundo de seus personagens. Hajime por exemplo, narrador de Sul da fronteira, oeste do sol, é um personagem fruto de uma geração japonesa pós-guerra (época em que houve um aumento de nascimentos de crianças nos países que participaram da Segunda Guerra. Este fato é de fundamental importância para a construção da personalidade de Hajime, que se ressente de ser filho único em uma geração em que os casais tinham em média dois ou três filhos), um baby boomer que passou pelos movimentos estudantis de 68 e pela bolha econômica japonesa da década de 80. Esses fatos são importantes e indissociáveis da trama e da construção dos personagens, mas a essência de seus dramas continuaria a mesma em outra época e lugar. O vazio do narrador vai persegui-lo onde quer que ele vá, pois é algo que está nele, em sua essência.


Neste romance de Murakami, publicado em 1992, o autor nos dá um ótimo exemplo desta sua literatura introspectiva e universalista. O livro é um daqueles que se lê de um só fôlego, apesar de que aconselhamos ao leitor a não fazer isso; suba para respirar às vezes, saboreie a leitura. O estilo de Murakami é fluido, agradável, fácil de se empolgar com a leitura e imergir na história. Muitas vezes o que o autor quer passar está nas entrelinhas de um diálogo, como no trecho final, em que a esposa de Hajime fala ao marido que ele não havia entendido nada, e ele confirma, então ela diz: “ O que eu acho é que você ainda não me perguntou nada.” O leitor mais atento irá cotejar essa postura de Yukiko, a esposa, que incita o marido a lhe perguntar algo, com a postura de Shimamoto, que quando reaparece na vida de Hajime, envolta em mistérios, pede a ele várias vezes que não lhe pergunte nada. Mas Murakami alterna essas mensagens subliminares com trechos da mais pura e profunda digressão filosófica e introspectiva:.


“É claro que além de ferir Izumi, também machuquei a mim mesmo. Feri a mim mesmo profundamente - muito mais profundamente do que percebi naquele momento. Esse acontecimento deve ter me ensinado muitas coisas. Mas, olhando para trás muitos anos mais tarde, o que eu tirei dessa experiência foi uma única verdade fundamental; ao fim e ao cabo, eu era um ser humano capaz de fazer o mal. Nunca foi minha intenção fazer o mal a ninguém. Mas quaisquer que fossem meus motivos e minhas intenções, conforme a necessidade eu podia ser egoísta e cruel, Eu era uma pessoa capaz de tecer justificativas e ferir de forma irreparável alguém de quem eu gostava. (...) Quando entrei na faculdade, quis mais uma vez começar uma vida nova, com um novo eu, em uma nova cidade (...) Mas no fim das contas, onde quer que eu fosse, eu só podia ser eu mesmo.”


Em Sul da fronteira, oeste do sol, Haruki Murakami consegue de uma forma literariamente harmoniosa, mas ao mesmo tempo intelectualmente instigante, aliar uma leitura ágil e agradável com complexas reflexões existenciais, de tal sorte que o leitor se pega, às vezes, devaneando entre um trecho e outro da mais bela escrita prosaica. Trechos que costeiam o poético (e aqui não poderíamos deixar de elogiar o excelente trabalho da tradutora Rita Kohl):


“De vez em quando o sol espiava por entre as nuvens, como se houvesse se lembrado de fazê-lo. Olhando essa cena, senti que certamente a veria de novo algum dia. Era o oposto de Déjà-vu. Não a sensação de que eu já vira aquilo antes, mas o pressentimento de que voltaria a encontrar uma paisagem como aquela. Esse pressentimento estendeu seu braço longo e se agarrou firmemente à raiz da minha consciência. Senti a pressão dessa mão. Esmagado entre seus dedos estava eu mesmo. Eu no futuro, com vários anos sobre as costas. Mas não consegui me ver com nitidez, é claro.”


Nat King Cole

O autor nos conta a história de uma amor que poderia ter sido e não foi. Escolhas feitas, de forma sutil, definindo o futuro de duas pessoas. Hajime e Shimamoto se conhecem quando ainda crianças, aos doze anos de idade. Ambos são filhos únicos, solitários, introspectivos. Eles se encontram fora da escola quase sempre na casa dela, e passam horas escutando velhos discos de música clássica e jazz, entre eles um de Nat King Cole (é de uma das músicas deste disco que o autor retirou o nome do livro: South of the border). Eles possuem uma conexão implícita, tácita, natural, que os une e os aproxima, ao mesmo tempo que se isolam dos outros. Ao mudar de cidade, na verdade apenas duas estações de trem de distância, Hajime no início a visita com frequência, mas aos poucos vai espaçando as visitas até perderem contato. A partir deste ponto o autor vai mostrando ao leitor o amadurecimento e o desenvolvimento do personagem/narrador; como o primeiro beijo, a primeira namorada, a primeira relação sexual e os anos na faculdade. Até Hajime se casar, tornar-se um pequeno empresário, dono de dois clubes de jazz (Murakami também foi proprietário de um bar de jazz quando tinha por volta de 30 anos de idade), e pai de duas filhas. Entretanto o narrador nos deixa claro que é um ser incompleto; não infeliz, mas não feliz, seja lá o que isso queira dizer. Hajime é um homem a quem falta algo, a quem o vazio é o seu lugar de estar: “Às vezes eu pensava que me sentiria melhor se conseguisse chorar, mas não sabia pelo que chorar, por quem chorar.” A lembrança de Shimamoto sempre lhe vinha à mente; com ela, só com ela, ele conseguiu, por um curto espaço de tempo, ser ele mesmo.


Em um certo dia, perto do final do ano, quando tinha por volta de 27 anos, ele segue uma mulher vestida elegantemente e que mancava de uma perna - como Shimamoto -, pelas ruas de Tóquio, em um episódio surreal, apesar de não ter certeza se era realmente ela. Uma noite, anos depois, quando Hajime já está casado, uma mulher muito bonita e bem vestida aparece em um de seus clubes. É Shimamoto! Deste momento em diante a vida de Hajime entra em uma espiral de dúvidas e de potencialização de uma angústia já latente. Shimamoto vem e vai, some por meses, volta, lhe faz um pedido inusitado - de levá-la a um rio, com características específicas e que corra diretamente para o mar -, desaparece novamente, e sempre envolta em uma névoa de mistério.


Haruki Murakami

Uma série de situações surreais, típicas dos romances de Murakami, se desenrolam pelas páginas do livro, mas de uma forma muito mais sutil e discreta do que em outras obras do autor. Devido a isso muitos críticos consideram este romance totalmente realista, enquanto outros encontram nele indícios dos elementos fantásticos sempre presentes na obra do autor, mas de uma forma tão discreta, disfarçada e entremeada à trama, que passa despercebida à maioria dos leitores. Alguns seriam até mesmo levados a perguntar se Hajime realmente reencontra Shimamoto. A Shimamoto adulta é real? Esta questão, por mais estranho que pareça, não é fundamental para a história. Que Murakami tenha querido brincar com o leitor e criar esta dúvida insolúvel - devido ao seu talento de urdir os acontecimentos de tal forma que realidade e fantástico se imbricam, até o ponto de não podermos identificar o segundo -, é um fator que dá um novo véu a história, mas não desvia das questões centrais do romance. Sobre a imbricação entre realidade e fantasia - pois o próprio Hajime chega a duvidar da realidade de certos acontecimentos, até mesmo dos seus encontros com a Shimamoto adulta -, o narrador nos apresenta esta sugestiva digressão:


“Para provar que certo acontecimento é real, precisamos nos basear em alguma realidade. Nossas memórias e sensações são incertas e parciais demais. Em muitos casos é impossível distinguir se um fato que acreditamos perceber é mesmo um fato ou apenas algo que nós percebemos como fato. Então, para fixar uma realidade como tal, precisamos de mais uma realidade - uma realidade adjacente - a partir da qual podemos relativizá-la. Porém, essa realidade adjacente também demanda alguma base para se confirmar como realidade. Ou seja, há outra realidade adjacente, que prova que a anterior é real. Essa cadeia se estende a perder de vista em nossa mente, e não seria exagero dizer que em certo sentido é justamente essa continuidade, a manutenção dessa cadeia, que forma a existência de cada um de nós. Mas se, por algum motivo, um elo dessa corrente se parte, você fica desorientado. Qual é a verdadeira realidade? Aquilo que há para além da ruptura, ou o que há do lado de cá.”


Quando Hajime relembra a noite que passou com Shimamoto, de olhos fechados ele vê seu corpo, “seu pescoço, seus seios, sua cintura, seus pelos, seu sexo…”, e para ele essas imagens são tão nítidas, tão claras, “por vezes muito mais nítidas e próximas do que a própria realidade”; mas como apontei anteriormente, essa não é a questão cerne do livro, pois apesar de lhe dar uma áurea de mistério, de realismo fantástico (Mukarami costuma dizer que: “Em vez de histórias de coisas anormais acontecendo a pessoas anormais, ou histórias de coisas normais acontecendo a pessoas normais, eu gosto de histórias de coisas anormais acontecendo a pessoas normais.”), o fulcro principal do romance é a busca interior do narrador, sua angústia perene, como se uma chuva fina fosse constante em sua alma. Aliás a chuva é uma constante no livro. Em diversas cenas ela está presente para ajudar a criar esta angustiante atmosfera de melancolia que extrapola do personagem para o ambiente externo, e não o contrário. Hajime é um ser incompleto. Ele ama a esposa e as filhas, gosta de seu trabalho, tem uma casa no campo, uma BMW na garagem, já teve algumas amantes, mas nada relevante que passasse de dois ou três encontros; contudo há uma incompletude que o sufoca, um algo a perseguir: “Aquilo que me falta não muda, em qualquer lugar a paisagem ao meu redor ou as vozes que falam comigo podem mudar, mas continuo sendo incompleto. Sempre com uma insuficiência fatal que me deixa faminto e sedento. Essa fome e essa sede me torturaram a vida inteira, e provavelmente continuarão me torturando. Porque, de certa forma, essa falta é quem eu sou.”

É então que uma personagem que Murakami havia deixado “escondida” (aparecendo até então de forma secundária e quase irrelevante), surge para salvar Hajime, ou pelo menos para lhe mostrar o caminho para que ele pudesse aprender a viver com sua dor, com seus fantasmas, enfim, consigo mesmo. Yukiko, sua esposa! Já nas páginas finais do romance ela lhe diz:


“Antigamente eu tinha meus sonhos, minhas fantasias. Mas, em algum momento, eles desapareceram. Foi antes de eu te conhecer. Eu os matei. Acho que os matei e abandonei por vontade própria. Como um órgão que não tem mais utilidade. Não sei se foi a decisão certa, mas não tinha mais nada que eu pudesse fazer. Às vezes eu sonho que alguém me traz isso de volta. Sonho a mesma coisa com frequência. Alguém aparece carregando algo nas mãos, dizendo: ‘Com licença, a senhora deixou cair isto aqui’. Eu fui muito feliz vivendo com você. Não tinha nenhuma insatisfação, não desejava mais nada. Mas, mesmo assim, tem sempre algo me perseguindo. Volta e meia acordo num sobressalto no meio da noite, encharcada de suor. Perseguida por essas coisas que eu achei que tinha abandonado. Não é só você que vive fugindo. Não foi só você que abandonou algo, que perdeu algo. Entende o que estou dizendo?


Murakami nos mostra, e faz Yukiko mostrar a Hajime, que todos nós temos nossos fantasmas, nossos desesperos, nossos vazios e medos, e não adianta se desesperar ou fugir o tempo todo, pois eles nos seguirão. O homem é obrigado a viver durante toda sua existência com aquilo que mais o apavora: ele mesmo. O ser humano é um eterno insatisfeito, a incompletude faz parte de sua essência. Aceite isso e busque que o convívio consigo mesmo seja ao menos suportável, como diria o poeta.


(A edição que serviu de base para este texto, é a da Editora Alfaguara, em pareceria com a TAG Experiências Literárias, de 2020, com tradução de Rita Kohl, Infelizmente essa é a única edição disponível no Brasil e exclusiva para os assinantes da TAG. Esperamos que em breve a Alfaguara disponibilize uma outra edição para o grande público. A editora portuguesa Casa Das Letras também possui uma edição traduzida diretamente do japonês.)





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