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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

TUDO É RIO



TUDO É RIO

Carla Madeira


O amor, o ciúme, o perdão e o triângulo amoroso; todos temas por demais explorados pelos escritores, que algumas vezes compõem obras primas ao abordar estes elementos. Dom Casmurro, de Machado De Assis, O túnel, de Ernesto Sábato, Madame Bovary, de Flaubert, Orgulho e Preconceito, de Jane Austen são alguns poucos exemplos de como a imaginação fértil e o talento no uso das palavras por parte de um autor podem dar vida e pujança a coisas que são muitas vezes cotidianas em nossas vidas, como os referidos amor, ciúme e perdão.

A escritora mineira Carla Madeira lançou seu primeiro romance, Tudo é rio, em 2014, pela editora Quixote, de Belo Horizonte, sua cidade natal. O livro percorreu lentamente um longo caminho para o sucesso, sendo primeiro indicado de boca em boca por seus primeiros leitores; mas somente alguns anos depois, ao ser relançado por uma grande editora, a Record, o livro tornou-se um fenômeno de venda, sendo ao lado do vencedor do prêmio jabuti de 2020, Torto Arado (já analisado neste blog), o romance brasileiro mais vendido no biênio 2021/2022.

Este triângulo amoroso entre a autora e as duas editoras é uma realidade no mercado editorial brasileiro, onde as pequenas editoras não contam com recursos logísticos e financeiros para divulgar seus livros. Creio não ser necessário um ataque de ciúmes da editora Quixote, que descobriu, acreditou e apresentou ao público esse primor literário que é o romance Tudo é Rio. Também não é caso da autora pedir perdão a seus leitores do resto do país que só puderam ter um acesso maior ao livro sete anos depois de seu primeiro lançamento. Não! Não cabem aqui perdão ou ciúmes, mas apenas uma linda história de amor do leitor com o livro de Carla Madeira.

Falar da linguagem poética e do ritmo harmônico da escrita da autora não é novidade nos textos críticos que já trataram da obra, mas é claro que somente a leitura e a imersão nas páginas do romance irão permitir ao leitor o desfrute completo dessa experiência literária. Talvez um pequeno aperitivo no trecho que reproduziremos a seguir dê uma vaga ideia do que falamos:


“Com a dor, o silêncio. Denso, ácido. Estagnado. Um silêncio de caco de vidro moído esfolando o corpo por dentro. Um desesperar, nada por vir. Dalva parou de falar com Venâncio. Não olhou mais para ele, considerou que ele não estava mais vivo. Ignorou sua presença. Nenhuma reação. Nem quando ele chorou, quando ficou sem comer, quando parou de se lavar, nem quando ameaçou morrer, nem quando mandou valente, cuspiu na cara dela, sujigou prometendo uma nova surra, jurando morte, morrendo esmagado pelo que não podia ser desfeito. Nada. Ele suplicou sincero, desamparado, e ela nem um olhar, nenhum perdão possível.”



Ao contar a história de um amor, de uma paixão pura, sincera e avassaladora, entre um homem e uma mulher, ambientado em uma pequena cidade do interior, sem data definida, a autora nos transporta a obras seminais de nossa literatura, muitas delas lidas em nossa adolescência, nos quais são imagens recorrentes: os passeios de mãos dadas pela praça da cidade ao redor do coreto, as reuniões noturnas ao som do piano ou do violão tocado por um dos convidados, a casa amaldiçoada das prostitutas, onde da varanda, em trajes sumários, as moças de vida nada fácil provocam as vetustas senhoras, quase sempre indo ou voltando da igreja. Esse ar déjà-vu impresso por Carla Madeira nas páginas de seu romance é claramente proposital. Uma espécie de homenagem a uma atmosfera literária que foi muito usada e bem explorada por grandes nomes da literatura brasileira, como Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Joaquim Manuel de Macedo, Jurandir Ferreira, dentre vários outros. No caso de nossa autora belorizontina, a preocupação com a atmosfera que ambienta a história está ligada mais à criação de um cenário cru para profundos e dolorosos dramas humanos do que necessariamente descrever o dia a dia e o funcionamento urbano da simpática cidadezinha. Neste ponto não há como evitar sermos remetidos a escritores como Lúcio Cardoso e Cornélio Pena, grandes nomes de nossa literatura introspectiva, que apesar de rumarem na direção oposta à nossa literatura ruralista e engajada das décadas de 30, 40 e 50, também sabiam criar atmosferas interioranas com grande poder visual sobre seus leitores: “Casas perdidas numa cidade do interior, paisagens e vidas marcadas de solidões e pesadelos. E de incomunicabilidade. Tudo deixa transparecer coisa antiga, revisitada, na busca de uma cura para a condição de viver” (escreveu Domício Proença Filho, na orelha do livro Repouso de Cornélio Pena, lançado originalmente em 1948 e relançado em 1998).

Esta “busca de uma cura para a condição de viver”, descreve quase que com perfeição o drama sofrido por Dalva e Venâncio, que têm seu idílico castelo construído por anos de convivência e amor destruído de um só golpe. E então perguntamos: de que maneira, quais as ferramentas emocionais que permitem que um ato isolado, que dura menos do que 15 segundos, transforme amor em ódio. Três vidas transformadas (por que é neste ponto que a prostituta Lucy se torna peça fundamental nesta história), três seres que haviam encontrado, cada um à sua maneira, o equilíbrio, a tão inconstante e efêmera felicidade. Um gesto, um único e irrefletido gesto, transforma a vida dessas três personagens em uma amargurante “busca de uma cura para a condição de viver. ’’

Carla Madeira, com uma habilidade rara para uma romancista iniciante, opta pela narrativa entrecortada, separando por dezenas de páginas, uma cena, de sua continuação. As histórias de Dalva, Venâncio, Lucy e Francisca, a personagem da redenção, que invade o livro de forma inadvertida, causando até certa irritação no leitor: “o que essa mulher tem haver com a história?”, mas que a leitura e o correr das páginas justifica e a faz necessária para o desfecho da obra.

Em um mundo de dor, tragédias domésticas, guerras, fundamentalismo religioso e outras tristezas que nos cutucam e nos perseguem pelas ruas e pela vida, não temos a mínima esperança, durante a leitura do romance, da salvação dos personagens. Esperamos que cumpram, de forma estoica, seus destinos trágicos, assim como os personagens de nossos autores introspectivos citados anteriormente; mas Carla Madeira, ao colocar seu bilhete no alto da escada, em um caminho cheio de obstáculos, para que ao lermos com a ajuda de uma lupa nos deparemos com um sonoro não, nos surpreende com um sim, como fez a artista plástica, ícone do movimento Fluxus, Yoko Ono, em sua obra Ceiling Painting. A autora nos acena, quando tudo se mostra perdido e aguardamos apenas a última estocada nos personagens, com uma janela de esperança. A obra redefine o conceito de perdão, como algo nem fácil, nem difícil, mas simplesmente muitas vezes necessário para a salvação de quem é perdoado e, principalmente, de quem perdoa:


“Precisava andar, queria despistar a culpa, escapar de seu veneno cáustico. Eu me perdoo. Entendeu? Respirou fundo buscando acalmar o tumulto. Cantarolou baixinho a música que Dalva cantou de manhã: pé-bola, mão-viola, boca-sorvete, olhos-enfeites. Largou a varanda em direção à rua, mas, mal abriu o portão, foi atingido pelo que viu: ela, em seu vestido branco de flores, caminhando de ombros abertos, os cabelos soltos, a valsa inspirando seus passos, vinha sem arrastar aquela maldita noite com ela. Onde jogou fora aquele peso? Tinha nos braços um pacotinho azul que segurava com graça: era João. Tudo vibrou dentro dele, teve vontade de chorar com a beleza da borboleta.”


Tudo é Rio é um romance com várias personagens que irão ocupar nossas lembranças literárias por muitos anos, alguns nem citados neste pequeno ensaio, mas construídos com grande rigor literário, como Aurora, mãe de Dalva. Uma obra escrita com um travo de amargura entre os dentes, mas com a ideia precípua e guardada até as páginas derradeiras, de dar esperança ao leitor, de redimir suas personagens, de lhes dar a cura para suas dores. Mesmo que careça de uma certa coerência e verossimilhança literária em seu desfecho, mesmo que cometa pequenos deslizes no tom as vezes excessivamente lírico, Tudo é Rio é uma pequena obra prima, condensada ao longo de suas (queríamos, como leitores egoístas que somos, que fossem mais) duzentas e poucas páginas.



(A edição que lemos para a confecção deste texto foi a 15° da Editora Record, datada de 2023. O livro também pode ser encontrado na edição feita pela Editora Quixote.)




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