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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

UM PÉ NA BOCA

Atualizado: 13 de ago. de 2021



UM PÉ NA BOCA


Cláudio Tadiello




A sociologia das memórias


O livro de Cláudio Tadiello Um pé na boca, nos é apresentado como um livro de memórias, mas com certeza esse rótulo não o define em sua amplitude. Sim, lemos em suas páginas o processo de formação e amadurecimento do autor, suas referências na infância, suas aventuras juvenis, seus causos, seus amores e dissabores, mas também acompanhamos um importante período da história sociopolítica do Brasil. O personagem principal do livro não é Cláudio, nem a Belo Horizonte dos anos 70, 80 e 90, esses são coadjuvantes, grandes coadjuvantes, sem dúvida, mas o personagem principal dessa história é o Brasil e seu processo de transformação social, política e econômica ocorrido nas últimas quatro décadas.


A estrutura da obra é toda ela alicerçada em contrapontos, o que lhe dá um equilíbrio instável que permite seu andamento e uma leitura ao mesmo tempo prazerosa e informativa. Para exemplificar, tomemos uma passagem do capítulo três, quando o autor nos conta uma de suas primeiras experiências escolares, nos descrevendo a cantina da escola - aliás, uma escola pública -, sua merendeira azul com o indefectível encaixe da garrafa térmica, e seu desejo de experimentar a canjica, a sopa e o copo de leite com pãozinho dado às crianças do “Integral, uma espécie de programa de alimentação para os alunos carentes” - como explica o autor -, enquanto ele, pobre garoto de classe média, precisava se contentar com seu lanche caseiro: “Eu com uma fome danada comendo bolo com laranjada quente (...) Já os alunos do integral naquela comida boa…” Aqui temos uma memória de infância que cala fundo no leitor contemporâneo de geração do autor - minha mãe mesmo foi obrigada, certa vez, a pedir a diretora da minha escola que me deixasse tomar a sopa servida para o meninos carentes, tanto foi minha insistência. Mais ou menos como aconteceu com Cláudio: “Eu estava excluído das cotas, mas certa vez, de tanto que olhei para a cantineira, uma senhora gorda e negra de bochechas brilhantes, essa me ofereceu a merenda.” - Após essas lembranças com as quais tanto nos identificamos e nos transporta no tempo, mas que carrega em sua falsa ingenuidade uma crítica sutil ao apartheid social impossível de ser percebido em nossa ingenuidade infantil, o autor, na mesma página, contrapõe uma crítica bem mais aguda. Após descrever o enfileiramento militar que antecedia a entrada em sala de aula, cantando os hinos patrióticos da Bandeira, Nacional, etc, lemos uma análise crítica de nossa estrutura social e política que não deixa dúvidas sobre o tom ideológico duro e não disposto a concessões, que é adotado em todo o livro:


“Saímos da pátria adestradora’ daqueles tempos das filas de mãozinhas nos ombros e caímos na ‘pátria educadora’, de 2015. Um pouco educadora, mas também de grande apelo eleitoreiro e direcionamento de voluptuosas verbas públicas para grupos econômicos do quintal do OPC (Ordem dos Pós-Candangos: entidade fictícia criada pelo autor) que, inescrupulosamente, ofereciam acesso a diplomas sem qualidades sob a bandeira da educação. Mal sabíamos que viria algo pior.”


A linguagem utilizada por Cláudio Tadiello flutua entre o poético e o coloquial, marcada pelo eruditismo (o livro aliás possui mais de uma centena de pés de página que situam e esclarecem o leitor acerca de expressões, fatos históricos, personalidades, localidades, etc), como por exemplo quando ele compara os cartazes de filmes pornôs expostos no hall de seu prédio de apartamentos - que também dava acesso a um dos mais populares cinemas da cidade, o Cine Regina, especializado na exibição de filmes pornográficos -, com as obras de Rubens e Dalí:


"Que paralelo pode haver entre as obras de Rubens, Dali e Dante e os cartazes do Cine Regina? Nua e profunda comparação. Rubens retrata de forma acachapante a bestial chacina bíblica, relatada por São Mateus. ‘Soldados possuídos, implacáveis e impiedosos’ extirpam as vísceras, fazendo saltar o horror e crueldade, vívidos nos corpos seminus, nas faces e nos músculos estirados de homens, mães e crianças, lacerados sem distinção. Já Dante com sua exegese retratada por Dalí na série de gravuras sobre a Comédia, traz toda a angústia do pecado do amor. A transdução de Dante por Dalí. Dante, ora metafísico, ora fragilmente humano, contido em vinte anos de escrita de um único texto. Uma vida presa entre as trevas e a liberdade do amor verdadeiro, puro e absoluto, por Beatriz. (…) Ficam os corpos de Rubens, nus retorcidos e amontoados, melados de sangue em anatomia crua da face da morte, misturados com as coxas e os peitos também melados, por sua vez, pelo prazer dos mortais. Nas caixas dos mestres das caixas do Regina, destacam-se os olhos carentes de amor, mas não de sacanagem e bizarrice, refletindo a luz e a escuridão de Dante. Uma odisseia entre o amor e o pecado. O paraíso, o inferno e o purgatório vividos todos de uma só vez, encaixotados em uma galeria na Rua da Bahia.”


Cine Regina - Belo Horizonte

Durante toda a narrativa, principalmente em sua primeira metade, o autor nos brinda com uma série de informações sobre a história de Belo Horizonte, sua arquitetura e seus tipos exóticos. Quem viveu em BH entre o fim da década de setenta e meados da década de noventa lembra de figuras folclóricas como a Andarilha e o Talidomida do Skate, que eu e meus amigos conhecíamos por outros nomes, mas que são facilmente identificáveis na narrativa do Cláudio. Me lembro também da Tomate e as lendas que gravitavam ao seu redor, além de vários outros que fizeram parte da minha adolescência e juventude em BH. Falando dessa forma os leitores deste texto podem achar que Um pé na boca é um livro direcionado exclusivamente a uma determinada geração de moradores de Belo Horizonte. Não. Sem dúvida, se o leitor tem por volta de 40, 50, 60 anos e viveu em BH no mesmo período do autor, terá uma identificação muito maior com as histórias contadas, mas isso de forma alguma exclui outros leitores menos identificados com o lugar e o período, pelo contrário. Como já dissemos anteriormente, a narrativa de Cláudio Tadiello permeia a história de nosso país por um período de quase 40 anos, e que foi essencial para a formação não só de duas gerações de brasileiros, mas na reconfiguração social, econômica e política do Brasil. As críticas e análises do autor sobre questões políticas e sociológicas que envolvem nosso país, às vezes são sutis, quase imperceptíveis, mas outras vezes soam como um grito de revolta, estrangulado, preso na garganta, como quando nos conta o caso de Paola, a filha da faxineira, “linda, magra e tímida", com a qual ninguém queria dançar nas festas da escola, onde os corações dos meninos batiam mais acelerados nas escolhas dos pares. O trecho é imbuído não apenas de crítica social, mas também de uma emocionante carga poética e débito histórico, que querendo ou não, está na conta de nossa geração:


“A segregação social sequer chega ao nível do preconceito por todos os tipos de ‘feios’, pobres, incultos, doentes, aleijados, perdidos, em sua maioria de pretos ou pardos. A sociedade simplesmente não enxerga A POPULAÇÃO INVISÍVEL DOS ENCARDIDOS DO BRASIL. Gente que está ao seu lado, cruzando a rua, às vezes servindo-o, outras vezes compartilhando.

O que se conhece da quadrilha é a valsa, o que se enxerga na calçada é o cachorro. Para se discutir qualquer cota, nos falta um baile sociológico profundo, para sermos dignos de uma dança.

Ah, Paola! Sua cabra* na cidade grande era ser filha da faxineira da escola. Matrícula garantida junto com o leite do Programa Integral que eu tanto invejava. Seus olhos e engasgo me impressionam até hoje, protegida atrás de sua carteira feita de escudo, com seu cheiroso plástico xadrez.

Eu teria enorme prazer em repetir a nossa dança, embora, talvez, por mais que eu me esforce, eu ainda não seja digno dessa honra.” (*Relativo ao “Programa da Cabra”, citado pelo autor algumas páginas antes, onde pessoas eram incentivadas a doar cabras para ajudar no sustento de famílias carentes do Nordeste.)


A obra segue uma cronologia um tanto quanto caótica, de idas e vindas no tempo, mas coerente com a estruturação dos capítulos e da obra. Além do mais, o autor usa um artifício extremamente inteligente e inserido em sua proposta de livro de memórias permeado por análises sociológicas referentes ao Brasil das últimas décadas. Nada melhor para estudar nossa tessitura social e econômica do que o futebol. Esse esporte desde seu surgimento no país no final do século XIX, vem sendo um espelho representativo de nossa sociedade, de nossos gostos, de nossos valores e até mesmo de nossos padrões éticos e morais. É muito comum vermos pessoas, dentre elas profissionais de várias áreas, fazerem analogias com o futebol para explicar determinadas questões técnicas. O autor de Um pé na boca se utiliza das Copas do Mundo de Futebol, a partir de 78, quando tinha sete anos de idade, para referencializar sua narrativa. E é muito interessante atentarmos para as mudanças de seu comportamento em relação às edições da Copa, o que determina não apenas seu amadurecimento como indivíduo mas também as mudanças sofridas pela nação nesse período, que de 1978 a 2018 passou por momentos de desilusão e amordaçamento ideológico, de esperança em uma postura socialista mais igualitária do governo, passando depois por um período de desilusão e frustração, até chegarmos a um momento de revolta e perplexidade: “Antecipo a Copa FIFA da Rússia em 2018, antes de voltar ao Brasil e à sua Copa de 2014 - copa do mundo FIFA - 2018. Rússia. Neymar Jr. Rolando Brasil. Nada mais.” É emblemático quando o autor fala sobre a copa de 82, quando tinha apenas 11 anos de idade, e descreve sua reação quando da derrota da seleção canarinho para a Itália por 3 a 2: “Ali provavelmente experimentava meu primeiro choque de realidade”.

E não só ele, toda a minha geração (eu tinha 13 anos na época) se sentiu assim naquele jogo. Foi simbólico em nosso processo de maturação, como um ritual de passagem para a vida adulta. A lição: nem tudo sai como queremos, há tristezas e derrotas pelo caminho, pessoas que amamos morrem, somos traídos por quem amamos, enganados, trapaceados e assim a vida segue, deixando em nós suas marcas. A vida é bela, mas a realidade às vezes é perversa e temos de aprender a sofrer, chorar (Paolo Rossi ensinou muitos de nós a chorar de tristeza, a chorar por uma perda, mesmo que fosse só de um jogo de bola), crescer. E aquele jogo nos mostrou isso. Talvez eu esteja sendo um pouco dramático, mas meus irmãos de geração entenderão, Cláudio entendeu.


Copa de 82 Brasil 2 x 3 Itália

O livro vai gradativa e paulatinamente adquirindo um tom mais político e engajado no correr de suas páginas. Essa transição, porém, é feita de forma natural. O tom político vai ganhando mais força na narrativa, assim como vai ganhando mais espaço na vida do autor. Seu amadurecimento político é percebido claramente na modulação do discurso adotado a partir mais ou menos da metade da narrativa, mais precisamente no capítulo “Filosofia de buteco e América Libre”. Ao mesmo tempo que a obra perde um pouco de sua leveza, que os causos vão rareando - a história do pau de bosta, os rolês pelas ruas do centro de bike (aliás há um trecho em que o autor declara seu amor por sua Monark 10, que não deixa nada a dever aos grandes textos da prosa poética de nossa língua, mas não vou reproduzi-lo aqui, você terá de ler o livro), o desbravamento do Parque Municipal, o primeiro beijo, a descoberta da sexualidade -, que o processo de formação identitária da criança e do adolescente vai ficando para trás, ele também ganha em reflexão sócio-política.

Algumas vezes, poucas vezes, a escrita de Cláudio não acompanha a rapidez e profundidade de seu raciocínio, deixando o leitor com menos elementos verbais do que seriam necessários para penetrar no âmago de sua intenção expositiva, como por exemplo quando ele nos diz: “Aproveitando as férias de verão pelo Canadá francês, refleti que, além da história, a grandeza e a latitude desse lugar guardariam, para mim, seu lastro social antropológico moderno. Talvez com paralelo nas terras da Nova Zelândia. Estou muitíssimo intrigado com isso. Mais uma vez, descobri os ingleses no protagonismo - não por acaso, novamente derrotando os franceses.” O leitor gostaria de compartilhar mais de perto e detalhadamente o motivo de sua intriga; mas entendemos que Um pé na boca não é um livro de sociologia política ou de antropologia cultural, mas um livro de memórias, e que às vezes o autor tem de abrir mão de aprofundar um assunto para não desvirtuar a própria identidade da obra.


Quando terminamos de ler a última linha do livro, ficamos com uma sensação ambígua. Ao mesmo tempo que o autor nos permitiu acompanhar tão de perto seu processo de formação como indivíduo, que nos deleitou com suas pequenas aventuras de garoto, que nos emocionou com a história de Paola, que nos levou junto para o seu amadurecimento político e ideológico, que nos fez acompanhá-lo e à sua família - agora já adulto, casado e com filhos - por suas viagens para o Peru, para sua estada no Canadá, ou seja, que tornou o leitor uma testemunha literária de seu trajeto de vida; ao mesmo tempo também sentimos um travo na garganta em relação à história recente de nosso país. Uma miríade de sentimentos nos invade: decepção, tristeza, raiva, mágoa, mas a esses leitores que ficaram com essa sensação, aconselho a abrir novamente o livro e ler cuidadosamente as três últimas páginas. Aí, você leitor, você leitor brasileiro, entenderá que ao contrário do jogo contra a Alemanha na Copa do Mundo, onde perdemos de 7 a 1, este, ou seja, o jogo da nossa história como nação, ainda não acabou, e apesar de estarmos perdendo feio, a solução é marcar e “comemorar um gol de cada vez, até virar o jogo”. E principalmente, não buscarmos mais heróis, não buscarmos salvadores da pátria, e sim, nós, cada um de nós, fazendo nossa parte como cidadãos, sermos os verdadeiros heróis dessa nação de fortes.


(Um pé na boca, de Cláudio Tadiello, lançado pela Editora Rodapé, pode ser adquirido diretamente na editora D'Plácido, que controla o selo Rodapé. WWW.EDITORADPLACIDO.COM.BR Telefone: 31 32612801)




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